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  • SAGRADO RISCO DO INFAMILIAR

    Íntima do lápis de cor e do grafite, é principalmente no desenho que Juliana Lapa (Carpina, PE - 1985) encontra uma superfície sinestésica que evoca recordações familiares, das vivências profusas das mulheres, do campo e da terra. Conversei com a artista sobre o seu desejo de dividir as memórias que estão impressas no seu trabalho. Juliana também compartilha os primeiros contatos com o desenho, suas referências visuais e a necessidade de ampliar diálogos sobre arte contemporânea em cidades interioranas. Festa da Morte, 2019 ELIZABETH BANDEIRA - Sua pesquisa se desenvolve a partir do desenho minucioso,   envolto por uma linguagem artística poética e intimista. Em tempos de interfaces e digitalização, você segue lidando com o papel. Qual é a sua história com o desenho? O que te aproximou dessa técnica? JULIANA LAPA -  Não sentia ter uma escolha. O desenho veio a mim da mesma forma que vejo surgir na minha filha pequena, como um caminho natural para desenvolver minhas pesquisas. Essa técnica tem algo relativo aos primórdios. O desenho me permite entrar mais e mais no fazer artístico, pois é um manuseio melindroso. Busco a construção de algo profundo com o risco, com a linha que deslancha. O grafite me proporciona um fazer artesanal, cotidiano e meditativo.  Minha história com o desenho também vai desde as minhas origens — ter crescido na Mata Norte de Pernambuco e ser envolta pelas histórias das mulheres de lá, que se misturam com as da minha mãe e com as minhas próprias. Essa técnica se aproxima de um lugar da infância até no momento da fabulação, na busca por contar algo através do prazer que é desenhar. Fotos: Danilo Galvão EB - Você poderia exemplificar como as fábulas se apresentam nessas obras? JL - Existe no meu desenho uma estrutura que conta uma história. Eu chamo isso de fábula. Uma obra que detalha bem essas narrativas que busco transmitir é A Festa da Morte . Para nomeá-la, usei como ferramenta o Tarô de Marselha, que me apresentou o Arcano 13, A Morte. Quando você olha essa figura enorme no desenho, o movimento dela lembra a obra Caronte , de Alexander Litovchenko, que data do século XIX. Esse personagem da mitologia grega é quem faz a travessia das almas para o mundo dos mortos. A lança dessa figura paira na obra sobre um crucifixo pregado na cabeça de uma mulher. A figura estaria anunciando um novo momento, uma nova ordem, uma ordem feminina, que se desfaz de controles sociais, os quais induzem culpa e dor. O estudo dos símbolos cria mais janelas para compreendermos aquilo que não conseguimos ver nitidamente.  EB - Qual é a diferença da processualidade do desenho para a pintura no seu fazer?  JL - Percebo mais a passagem do tempo quando pinto. Porque a pintura é uma técnica que requer mais de mim. Tenho que estar presente para a pincelada e a construção da mancha. No desenho, posso trabalhar com mais abstração. Me sinto mais suspensa sobre ele, colocando-me em um estado de permanência. O desenho, para mim, pode ser até como um mecanismo de fruição e meditação. Existe uma busca e o desenho é a ferramenta que uso nesse processo intuitivo. Brasa e água, 2017 - 2019 EB - Você poderia falar um pouco sobre como foi a experiência do seu projeto de livro Sorte, saúde e felicidade ? JL -  Em 2019, para fazer essa pesquisa, saí de carro pelo interior de Pernambuco, seguindo pelos municípios de Buíque, Exu, Santa-Maria da Boa Vista, Ingazeira e Carpina. Dentro desses lugares, o que havia em comum eram as histórias e vivências de mulheres agricultoras, ou mulheres que viviam em lugares com agricultura, como era a horta comunitária Djanira Menezes. Infelizmente ela está inativa agora, mas foi muito interessante conhecer esse espaço organizado por mulheres do assentamento Boqueirão, em Santa-Maria da Boa Vista, às margens da estrada da reforma agrária. Toda essa pesquisa também é permeada pela história da minha mãe. É como se tivesse entrado em um assunto que talvez dure a vida toda em mim e na minha arte, que é o cuidado com o campo, a relação transcendental e elementar entre a mulher e a terra. Trabalho em horta comunitária organizada por mulheres do assentamento Boqueirão, em Santa-Maria da Boa Vista / Acervo pessoal EB - Existe uma itinerância contínua na sua trajetória. Você já morou em Carpina, Recife, Olinda, Florianópolis e, mais recentemente, Montreal, no Canadá. De que forma esse processo migratório toca na sua linguagem artística e nas suas produções? JL - Quando me desloco, a memória do lugar onde vivi passa a ser outra coisa, mas não em um sentido nostálgico. Fui para Florianópolis por causa da minha sogra, que faleceu. Nunca foi “Ah, agora vamos viver em uma nova cidade!”. A gente se mudou para ajudar e acompanhar esse momento. E aí rolou a pandemia da covid-19 e ficamos confinados em Floripa. Logo depois engravidei e segui por lá de 2021 a 2023, quando precisei voltar para Pernambuco para cuidar da minha mãe, que estava com Alzheimer, e que, em dezembro, faleceu. Quando estava em Carpina, já sentia Floripa através de uma  atmosfera de sonho, de lembrança, de memória. Como uma beterraba que você deixa no canto por vários dias: ela vai se transformando em outra coisa, forma ramos. Existe essa transformação da memória. Atualmente quero firmar minha base aqui no Recife, mas quando fazia esses processos migratórios também tinha um pouco de sair daqui para olhar para cá com uma certa distância que estando dentro eu não conseguiria enxergar. Colheita Noturna, 2023 Outro ponto é que achava que poderia criar de qualquer lugar do mundo, mas não sou esse tipo de artista. Por exemplo, em 2020, morava na casa dos meus sogros e estava sem espaço para criar. Foi um ano que passou devagar, até pelo clima pandêmico, que se traduziu em Necrópole , o único desenho que fiz nesse período. Em Olinda tinha um ateliê, então eram trabalhos maiores. Já no Canadá, país que fiquei de novembro de 2023 a maio de 2024, o processo foi mais frio e solitário. Entendi que, para criar, preciso estar no meu lugar, estar em conexão com as pessoas da minha cultura. Essa peregrinação foi uma busca por identidade que eu mesma nem sabia que estava buscando.  Necrópole, 2020 EB - Você rememora muito sobre Carpina, não à toa um dos seus últimos projetos, a Casa Viva , foi situado em um casarão antigo na sua cidade natal. A existência deste projeto também implica discussões sobre a preservação do patrimônio histórico. Por que foi importante a escolha desse espaço no município? Você tem alguma memória relacionada a ele antes da Casa Viva ? JL - Ele é um dos casarões mais antigos de Carpina, que é uma cidade fundada há 115 anos. A minha avó foi morar no município na década de 1950 e esse casarão, que já era erguido há muitos anos, ficava de frente para a casinha da minha família. Eu me lembro dele quando era pequena, parecia mal-assombrado. Quando pensei em fazer uma exposição em Carpina, articulei junto a Bruna Rafaella Ferrer ¹  onde esse projeto poderia ser executado, já que não havia ali um espaço voltado para artes visuais. Achamos interessante abrir essa discussão sobre patrimônio na cidade porque está tudo sendo derrubado, e não é só em Carpina. Reabrir esse casarão foi também poder falar de sonho. Zona da Saudade da Mata Norte, 2023, Foto: Danilo Galvão EB - O papel do educativo no desenvolvimento da  Casa Viva  foi fundamental. Inclusive, são citadas no material didático do projeto algumas atividades propostas para o público visitante, como os mapas afetivos e a  frottage . Queria saber porque foram escolhidas essas duas ações e quais rotas foram percebidas, tanto por você, quanto pelo educativo, neste processo de estímulo à emancipação cognitiva? JL -  A abordagem da Casa Viva  veio de um desejo de nos comunicarmos e trocarmos com o município. Buscamos estimular um pensamento ativo em quem adentrasse na Casa . Quem entrava ali podia ver e brincar com as obras. Elas podiam ser tocadas. Oferecemos bolo e café, tinha algo de hospitalidade que falta em galerias e espaços artísticos, rodeados por paredes brancas enormes e seguranças na porta. A frottage  é uma técnica surrealista de produção de imagem. A casa tinha muitas texturas, relevos e pisos com desenhos interessantes, tudo ali era para ser experienciado. Muitas pessoas perceberam que desenhar é algo mais simples do que se imagina. Tinha também o exercício da Pintura sem Fim , onde cada pessoa contava uma narrativa a partir da junção das faces de cubos. Era interessante, pois recebíamos muitas escolas e esses jovens contavam histórias de feminicídio, um assunto latente na cidade. Temas difíceis de serem tratados na escola surgiam espontaneamente na Casa Viva . Foi importantíssimo produzir uma arte que abre para o diálogo tangível, possível de ser discutido e compartilhado. O educativo não trabalhou no sentido de conduzir, mas de acolher e dar suporte às ações que aconteciam ali dentro. EB - O que você traz consigo a partir da conclusão das atividades na Casa Viva ? JL -  Sentir-se à vontade no espaço artístico também é função do artista. Estamos fazendo uma proposição de mundo. Gostaria de propor um lugar de diálogo e de experimentação. Quem visitava o espaço podia tocar em tudo. No final, as obras tinham um rastro das mãos e achei aquilo lindo, porque as pessoas deixavam também a sua marca. Podia ver onde os visitantes pegavam mais nas obras: existe um trabalho de uma mulher azul que jorra sangue vermelho de guache do seu peito. As pessoas tocavam muito ali. Teve uma experiência com uma visitante, acho que ela era do município de Lagoa do Carro, que falou pra mim que nunca tinha tocado em uma obra de arte e quando passou a mão nessa obra,  sentiu na boca um gosto de sangue. Achei essa fala muito forte. Claro que isso diz mais sobre ela do que sobre o meu trabalho, mas foi possível dar essa abertura a alguém por meio desse espaço artístico. Roda a saia, 2023 EB - Seu trabalho preza pela minúcia de detalhes. Quais são as suas referências artísticas?  JL - Recorro como referência às pinturas medievais e renascentistas. Gosto de Pieter Bruegel ²  e Giotto di Bondone ³ . Tenho uma verdadeira paixão pelo trabalho de Georgia O'Keeffe ⁴ , porque acho desafiador entrar naquele mundo silencioso. O meu trabalho tem ruído, informações que parece que gritam às vezes. Então, quando vejo qualquer trabalho da Georgia me questiono como chegar ali. Bruegel me ensinou como contar uma história dentro de um espaço de tempo. É um trabalho assumidamente espiritual e encaro a minha produção da mesma maneira. Encontrei referências na literatura também, estou lendo atualmente o artigo A serpente como símbolo do tempo da arte latino-americana , de autoria da pesquisadora Marcela Botelho Tavares. Riacho das Almas, 2019 EB - Conjugar a produção artística nas vivências da maternidade pode ser um grande desafio. A experiência de criar alguém se transformou em matéria criativa para suas obras? Como o maternar e a figura da mãe atravessam a sua vida atualmente? JL - Quando descobri que estava grávida, fiquei “Eita, que massa!”. Sempre desenhei figuras grávidas, o ventre, a gestação. É uma coisa bizarra fazer crescer uma pessoa dentro da sua barriga. Gosto também dos símbolos que isso tem, o ventre como um recipiente alquímico. No meu desenho, no entanto, ainda estava dentro de um ciclo que havia se iniciado há um tempo atrás. No momento que compreendi minha condição, que era muito profunda — e esse entendimento só o tempo poderia dizer —, comecei a desenhar a gestação com muitos fluxos: veio muita água, usei bastante tinta e pincel. Percebi que meu trabalho mudou porque comecei a colocar cores nas obras. Antes, só investia no grafite ou no monocromático. Quando penso sobre a temática do maternar na minha vida, entendo que é muito difícil ser mãe e ser artista. É difícil o cansaço mental, porque por mais que meu marido esteja ali dando o melhor dele para cuidar da bebê, a minha filha só quer fazer tudo comigo. Não é humanamente possível cuidar de uma outra pessoa nesse nível que a maternidade exige. É tão pesado que corre o risco de tirar o brilho do trabalho. Acho que o processo de me tornar mãe me aterrou muito. Mas não vou deixar de ser Juliana para ser só a mãe de Maria. Trabalho conciliando esses papéis.  Autorretrato grávida, 2021 EB - Seus estudos sobre as suas séries de desenho são registrados em diários. Qual a sua relação com esses cadernos e de que forma a escrita atravessa o processo de feitura de suas obras?  JL -  O meu trabalho atravessa uma pesquisa sobre a minha vida e principalmente sobre os meus sonhos. Realizo o exercício de trazer para o mundo tangível esse aspecto onírico por meio do papel. Escrevo no caderno como um processo de liberação de fluxo de ideias, no qual anoto palavras, cores, gestos, a atmosfera de sonhos... Isso é importante para a minha construção de imagens, que entra no campo da poesia, da reflexão filosófica e teórica. O resultado é pictórico, mas a imagem é só a pontinha de um processo que se inicia a partir da busca nesse campo invisível, incomum e subconsciente. Acervo pessoal EB - Quais são as histórias que você busca contar através do seu trabalho? Quais memórias e temáticas seguem rondando a sua produção? JL - Sinto que vem muito conteúdo pessoal para a minha obra, mas não no sentido psicanalítico. Uso os recursos que tenho de história de vida para poder falar sobre mulheres, natureza, as memórias de Carpina, que é minha cidade natal, e as histórias da minha família, especialmente aquelas que envolvem a minha mãe. Ela era uma pessoa peculiar: nasceu no Agreste, teve uma história de vida marcada por abusos familiares e violência dentro do espaço rural, nas plantações de algodão. Minha mãe também foi uma figura central para minha formação técnica, porque aprendi desenho com ela. Cresci observando ela pintar panos de prato para vender, daqueles com imagens de vela, maçãs e umas bananas, todos esses elementos misturados em um acessório de cozinha. Por causa dessa influência, até hoje uso tintas de tecido Acrilex no meu trabalho. Estou adentrando na minha arte temáticas de matrilinearidade ⁵ , que permeiam os meus sonhos e as lembranças do meu fazer artístico. Tenho símbolos recorrentes. A mulher, o corpo, a ferida, a dor, a paisagem enquanto corpo, que também expressa uma emoção. Todas essas paisagens dizem alguma coisa, quase como se fosse um terceiro personagem. A Experiência Confirma as Suas Visões, 2018 Quem é essa paisagem? Porque ela se comporta dessa forma? A partir da recorrência das histórias que são contadas na obra fui fazendo uma auto-análise. Os meus diários de criação também expressam esses caminhos. Os cadernos vão me dando esse indício do que a imagem estava tentando puxar, pois são duas linguagens que se complementam. É como se eu me encontrasse no processo de escrita desses diários de bordo e o desenho acolhesse as histórias que fazem parte de mim para transformá-las em alguma mensagem. As fábulas de várias mulheres desaguam no meu ofício, especialmente aquelas que envolvem a minha mãe. Queria fazer algo com essas histórias, que também ressonam com as minhas e de muitas outras mulheres. Juliana Lapa (Carpina, PE - 1985) nutre os cuidados emocionais e ecológicos dentro da sua prática artística. Íntima às técnicas artesanais, seja pelo manuseio do lápis de cor e do grafite em suas obras, é no desenho que a artista encontra uma superfície sinestésica capaz de abrir diálogos contínuos sobre as histórias do campo, entrecortadas por memórias coletivas e aquelas que pertencem ao seu íntimo familiar, assim como de temáticas relacionadas às vivências profusas das mulheres. Em conversa com a redatora da Propágulo, a entrevistada discute seu desejo em compartilhar as memórias que estão impressas no seu trabalho, além de desvelar os primeiros contatos com o desenho, suas referências visuais e a necessidade de abrir um diálogo sobre arte em cidades interioranas.  ¹ Bruna Rafaella Ferrer (PE - 1983) é nascida em Vitória de Santo Antão. Coordena o grupo de desenho e performance de modelo vivo Risco!. Atualmente é artista pesquisadora, junto com Luana Andrade, no projeto Educação como ____. , em que integra processos artísticos e pedagógicos para investigar o que chamam de situações pedagógicas. ²  Pieter Bruegel (NLD - 1525–1569), o Velho, foi o artista mais importante da pintura renascentista flamenga e brabantina, um pintor e gravurista da região de Brabante, conhecido por suas retratações de paisagens e cenas camponesas; foi também o primeiro pioneiro que optou em fazer as duas modalidades de foco em suas pinturas de destaque. ³  Giotto di Bondone (IT - 1267–1337) foi um pintor e arquiteto italiano. Considerado o precursor da pintura renascentista. ⁴ Georgia O'Keeffe (USA - 1887–1986) foi uma pintora estadunidense. Conhecida por suas pinturas com foco em detalhes de flores, a paisagem do Novo México e os arranha-céus de Nova Iorque, é considerada hoje como a “mãe” do modernismo dos Estados Unidos. ⁵ Matrilinearidade é uma classificação ou organização de um povo, grupo populacional, família, clã ou linhagem em que a descendência é contada em linha materna.

  • TERRAS EM TRAVESSIA

    “Caminhar pra trás, enganar o invasor”: biarritzzz e abr0s me gritaram em 2022 através de um curupira que caminhava pra trás, acompanhado dessa frase pixada num tapume pelas ruas. Se quem me ler for uma pessoa racializada que habita os diversos não-lugares das cidades, talvez possa reconhecer a emergência que mora nesse grito. Eu reconheci que não estava sozinha. É que desde 2020, em meio às incertezas do começo da pandemia, eu já andava caminhando pra trás junto a minha mãe e duas mais velhas da família, seguindo as pistas que a oralidade foi trazendo. O medo de perder essa nossa memória viva para o enorme descaso com a vida que imperava naquele período, fez a gente usar o que tinha para documentar o que guardávamos só na oralidade: desenho, pintura e as ferramentas contidas nos dispositivos móveis. Alguns desses achados, comecei a sistematizar através da arte, enquanto artista-pesquisadora no Núcleo de Práticas Artísticas Autobiogeográficas da UFG, depois esses e outros achados se tornaram meu projeto de mestrado em Antropologia Social, pela UFPB. Vim aqui contar um pouco do que fui encontrando nesse caminho: PASSOS QUE VEM DE LONGE Comecei me perguntando se eu poderia dizer que viajar ou talvez imigrar é uma tradição ancestral na minha família... É que pelo menos desde a geração dos pais da minha bisavó (que é até onde nossa memória familiar alcança) que temos o costume de ir morar em outro lugar que não o de nosso nascimento. Nessa pesquisa, além dos achados preciosos da oralidade, eu e minha mãe descobrimos alguns documentos sugerindo que talvez essa itinerância nossa seja muito mais ancestral do que a gente imaginava. Vou contextualizar vocês. Eu nasci em Recife, já mainha nasceu em Natal e hoje em dia mora no Sul da Bahia. Sua mãe foi uma das poucas da família a arriscar sair de Limoeiro do Norte - CE pra morar numa capital (Recife), mas é a história da família do pai da minha mãe que realmente me impressionou: meu avô materno nasceu no Rio de Janeiro, mas só por que sua mãe, minha bisavó, nascida e criada numa casa de taipa no bairro do Alecrim em Natal, não queria que o filho fosse registrado como nordestino (o mesmo aconteceu com minha tia-avó, anos depois). Mas o mesmo navio que a levou pra ter os filhos no Rio, depois trouxe todos de volta pra morar em Natal. O navio em questão era onde trabalhava meu bisavô, um capoeirista cuja família é de Valença-BA e que fazia parte da tripulação da marinha. O conheci quando nem me entendia por gente ainda, no finalzinho de sua vida. A bisa cheguei a morar com ela quando criança (enquanto minha mãe viajava) e durante minha graduação em Artes Visuais até 2012, quando eu me formei e ela veio a falecer. Não sabemos precisamente de que terra vieram os ancestrais da bisa Izabel, só temos a afirmação trazida pela memória de minha tia-avó Iza e por sua prima Adilse que minha bisa era descendente de indígenas e que sua mãe, Maria, era nascida em Igreja Nova (RN) e descendente de uma família que veio do Seridó. Vó Maria era rezadeira da comunidade onde foi morar (depois de casada) no bairro do Alecrim, na época que essa região era uma periferia cujo chão era de areia branca e as casas feitas de barro, aos arredores de Natal. Com a ajuda desses e outros relatos orais vindos de duas mais velhas da minha família, cruzando com relatos do povo que hoje habita a região de seu nascimento, recriei um retrato pra Vó Maria: Vó Maria Tarairiú, geotinta, tecido e folhas de manjerioba sobre tela, por Ianah Movida pela curiosidade de conhecer os lugares que já fizeram parte da história desse ramo da minha família, comecei uma série de itinerâncias por essa nossa memória. Como já era meu costume, fui coletando amostras das terras desses territórios para minha coleção de pigmentos naturais, que fabrico artesanalmente desde 2017 no meu ateliê pra fazer pinturas. Mas agora passei a me indagar: já que não temos uma terra de onde viemos, seria essa minha forma de “ter” todas as terras por onde as itinerâncias negras e indígenas da minha família já passaram? Andei atenta às cores das terras nos entre-lugares de Recife, Valença, Salvador, Natal, Macaíba, São Gonçalo do Amarante, Acari, Currais Novos, etc. Fiz uma cartografia cromática a partir dessa vivência, numa obra chamada Travessia Demarcada (2023). Travessia demarcada, geotinta sobre tela, galhos de jurema, fios de algodão e palha da costa, por Ianah TEM GENTE MORANDO NESSE CAMINHO Nessas andanças, fui conhecendo algumas pessoas que hoje residem em alguns desses territórios, e fiquei encantada ao saber que pertinho de um dos lugares da nossa memória, tem um povo lutando por sua terra e contra o apagamento da sua história e etnicidade ¹ : A Comunidade Indígena Tapuia Tarairiú Lagoa do Tapará. Essa comunidade fica num entre-lugar periurbano da Grande Natal, entre os municípios de Macaíba-RN e São Gonçalo do Amarante-RN, da qual Igreja Nova é atualmente distrito. Fui apresentada a essa comunidade através do olhar de uma família de artesãos, que me acolheram e se reconheceram nas minhas intinerâncias familiares. Josué Kyalonã Campêlo, artesão e uma das lideranças da comunidade, e sua esposa Akriptzé, me falaram que suas famílias também são um tanto itinerantes: ele morou muito tempo em São Paulo e a família dela vem do Seridó. Kyalonã me indicou algumas leituras sobre uma possível tradição semi-nômade dos Tapuia, entre elas, o texto de Olavo Medeiros Filho ² , que afirma que eles “mudavam frequentemente de acampamento, ao sabor das contingências alimentares” (FILHO, 1999, p. 249). Foi aí que todas essas nossas andanças fizeram um especial sentido pra mim: talvez faça mesmo muito tempo que a gente seja itinerante. Fui chamada por eles pra ajudar na organização da Feira Cultural que acontece todo ano em Maio, e desde 2022 tenho me somado a essa mobilização da comunidade ajudando principalmente a fazer os materiais gráficose em 2023, a cacica Francisca me chamou pra criar a arte da camisa e do cartaz desse evento, o que fiz com muito prazer, usando como referência os grafismos que Kyalonã já usava pra ilustrar a constelação do Setestrelo (um dos símbolos da re-existência Tarairiu) em seus artesanatos. À esquerda, Design da camisa da VII Feira Cultural Tapuia Tarairiú; à direita, Maracás feitos por Josué Quando contei sobre esse encontro com o Tapará e as artes feitas pra Feira pra minha tia-avó, ela me contou que aprendeu com sua mãe (a bisa Izabel) a reconhecer a constelação do setestrelo no céu. Ela me contou que se orgulhava de ser a única na sua turma da escola a ter conhecimento da existência do Setestrelo, embora talvez já não mais soubesse da conexão ancestral que essa constelação tem com as festividades da colheita, celebrada pelos Tarairius em retomada hoje em dia. Quando mostrei a Josué Kyalonã o vídeo em que ela falava sobre essa constelação, ele me disse, em uma entrevista concedida também em vídeo: [...] o fato de você ter na família alguém que cita o setestrelo, isso é muito importante, por que nem toda família tem esse privilégio na sua história oral, na oralidade. Então se chegou até você pela oralidade é uma prova, pra nós povos indígenas, é uma prova muito forte inclusive da linhagem da tua família. (informação verbal) ³ Desde que entendi que existem grandes chances da minha ancestralidade indígena vir dessa mesma nação sertaneja, passei a usar também pontualmente o Setestrelo em algumas obras minhas, sempre que quero fazer referência a esse caminhar pra trás ou diretamente a essa ascendência. Como na obra A Visita do Setestrelo, que é o retrato de um sonho que tive enquanto estava passando um período lá na comunidade do Tapará. A Vista do Setestrelo, geotinta sobre tela, por Ianah Não pretendo com isso fazer nenhuma afirmação identitária, necessariamente, mas mais do que tudo, fazer o que foi sugerido por Sidarta Ribeiro em seu livro Sonho Manifesto (2022): saudar e honrar nossas melhores ancestralidades. POR OUTRAS ROTAS Nessa busca, além de mergulhar nas estradas entre Recife e Rio Grande do Norte, também fui buscando referências e inspirações com artistas de outros povos, que também andaram fazendo esse movimento de usar a arte para caminhar pra trás, em direção a um futuro ancestral. Como é o caso do artista Luis May, escultor e ceramista da etnia Maya, que tem seu ateliê em Cobá, México, uma das zonas arqueológicas mais extensas (e ainda não tão desvendadas) do seu povo. Luis é escultor, trabalha com cerâmica, madeira e usa o barro pra retratar pessoas da sua cidade. E além das esculturas bastante realistas, Luis também tem estudado técnicas pré-hispânicas de arte, como uma forma de despertar uma cultura que anda um pouco adormecida, mas presente, entre os seus. Esse ano, depois de ser selecionada para uma bolsa de mobilidade artística pela FUNARTE, fui aprender com Luis sobre arte e sobre a história de (re)existência ⁴ do seu povo. Luis tem se destacado nessas suas pesquisas ancestrais principalmente pelo sucesso que ele teve ao recriar a antiga (e até então perdida) receita para o Azul Maya, pigmento milenar que já foi datado em alguns templos Maya (como o de Bonampak) como uma cor que está resistindo ao tempo desde muito antes da invasão espanhola. Esse pigmento é feito a base de terra e outros ingredientes naturais que estão muito bem guardados em segredo entre os parentes de Luis. ⁵ Lá no seu ateliê aprendi a fazer cerâmica, reboco, pigmentos e aglutinantes naturais, seguindo a tradição pré-hispânica dos Maya. Aprendi também que existem outros artistas também fazendo essa re-existência ancestral entre os Maya que habitam o campo e as cidades, e que quase sempre a arte está no front em suas lutas. Artes feitas por Ianah e Luis May durante a residência artística / Acervo pessoal de Ianah Voltei do México em Maio deste ano com mais uma cor de terra na bagagem. Uma terra pintada de um azul que é natural assim como a cultura Maya que ainda molda e re-existe naquela região. Tenho minha primeira terra internacional na minha coleção, também o primeiro azul pra minha paleta. Tenho também bastante material pra transcrever nos áudios gravados em campo e muito trabalho pela frente nas minhas andanças para pesquisas artísticas e acadêmicas. E vi que de fato nem de longe estou sozinha nesse caminhar pra trás. De fato não pertenço a nenhuma dessas terras por onde passo. Não o suficiente pra dizer que qualquer uma delas seja a “minha” terra (talvez Recife, onde fui uma das poucas da família a nascer e ser criada). Mas todas essas terras pertencem às cores da minha travessia, que pelo visto já vem acontecendo há muito mais que 500 anos e há de seguir acontecendo por pelo menos uma vida inteira. Aprendi com a agroecologia que os saberes são sementes a serem dispersadas e multiplicadas. Se tudo der certo, essas sementes da memória hão de reflorestar todo o apagamento feito nas terras desse caminho. Autocultivo III, pintura com terra, por Ianah  ¹ CARVALHO, F. P. De; MARQUES, J.; FIALHO, V. Tapuias Tarairiús da Lagoa do Tapará: Origens, Cultura e Ambiente. Nova Cartografia Social do Nordeste, 2021. n. 1. ² FILHO, O. M. Os Tarairiús, Extintos Indígenas do Nordeste. Em: ALMEIDA, L. S. De; GALINDO, M.; SILVA, E. (Org.). Índios do Nordeste: Temas e Problemas. Maceió: EdUFAL, 1999. ³ CAMPÊLO, Josué Kyalonã Jerônimo. Entrevista Josué 2. [jun. 2022]. Entrevistadora: Ianah Maia de Mello. Macaíba, 2022. Entrevista Josué 2.mov (59 segs). ⁴ ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética en la encrucijada descolonial. 2a edición ed. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2009 (p. 94, rodapé). ⁵ MELLO, Ianah Maia. Diário de Campo: Residência Artística Ancestral. Cobá, México [s.I] , 2024.

  • SIMBOLOGIA ANCESTRAL NA ARTE DE DIOGUM

    Em conversa com a redatora Elizabeth Bandeira, Diogum (1986) compartilha a sua trajetória artística, desde a infância até a rotina de criação das suas esculturas em ferro. O diálogo também acompanha a história por trás da obra "Ofá de Oxóssi" e quais as principais referências que refletem no trabalho atual do artista.   ELIZABETH BANDEIRA - Qual o seu nome, sua idade e de onde você é?  DIOGUM - Olá, me chamo Diogum. Tenho 38 anos e sou um artista pernambucano, morador de Bonsucesso, bairro histórico de Olinda, que sedia o Homem da Meia-Noite.  EB - Você poderia contar pra gente quais são as suas memórias iniciais com esse material? Além disso, de que forma esses elementos são conectados com o início da sua trajetória artística?  D - Esses elementos estão presentes na minha vida desde a infância. Quando criança, meus brinquedos, até carrinhos pequenos, eram de ferro ou aço. Tinha acesso a esses materiais porque meu pai, Zaqueu, também era metalúrgico e um grande serralheiro. Era meu mestre e um cara muito sábio. Aprendi com ele a técnica, mas fui desenvolver minha arte depois de adulto.  EB - Como é o seu processo criativo? Do rascunho até a materialização do seu trabalho. D- Às vezes faço o rascunho da peça na minha bancada de trabalho, ou passo para o papel. Para as minhas esculturas de Ofá, me inspirei em pencas de balangandãs, que são jóias crioulas do século XIX. Naquela época, os ourives pretos não podiam ter as mesmas jóias que os brancos, ou da Coroa Real, então eles fabricavam seus próprios adornos. Então fui desenvolvendo várias obras que possuem um movimento que evoca leveza. Ogum, que é o senhor do ferro da tecnologia, é meu orixá. Sou ogã também, então meu trabalho é ligado ao contexto da ancestralidade e do candomblé. Por exemplo, o Ofá no múltiplo da Propágulo temos o símbolo de Xangô, um machado da justiça, o símbolo de Exu, representado por um tridente, que é o divino e o terreno, tem o Abebé de Oxum e o peixe para representar Iemanjá. Foi nesse processo de juntar as ferragens de Candomblé com os balangandãs que cheguei no resultado final da minha criação.   EB - Quais referências você mobiliza ao realizar suas esculturas e demais produções? D - Trago referências da minha ancestralidade. Quando mais novo, e ainda sem saber que meu orixá era Ogum, me levaram para jogar búzios. Essa minha ligação faz sentido, pois cresci com pessoas que trabalhavam com metal, um material fundamental para o estreitamento das relações com esta entidade. Eu pratico capoeira e também toco afoxé, então tudo que faço tem pertencimento e força da ancestralidade. Além disso, minha companheira Silvana, que também é artista plástica, me dá muitas dicas e também participa do meu processo. Exposição Ferro Ifé: O Atlântico Negro de Diogum, individual do artista com curadoria de Bruno Albertim na Galeria Amparo 60, em cartaz de 04 de junho a 05 de setembro. Fotografias: Danilo Galvão EB - Como é ser um artista negro, que é autor de uma obra tão política e ancestral, e adentrar espaços ainda muito envoltos pelos códigos da branquitude, como são as galerias de arte?  D - O meu processo dentro das galerias está sendo muito importante para mim, mas acredito que está sendo ainda mais importante para as pessoas que as compõem, e aos tantos pretos que, ao me verem ali, também sabem que é possível ocupar esses espaços. As artes visuais sempre foram um lugar de branquitude e de uma elite branca, por conta disso nós vemos ainda tantos artistas pretos com um talento incrível, mas que ainda não estão dentro desses lugares. Enxergo nesse momento que estamos vivendo uma força ainda maior ao trabalho de artistas negros, que se destacam por sua originalidade, como Jeff Alan e Derlon Almeida, por exemplo.  EB - Quais discussões você busca reverberar com as suas obras? D - Gosto de trazer o conceito da ancestralidade, tanto em sua beleza, como na proteção, nas minhas obras. São esculturas que trazem esse axé e harmonia para dentro de casa. Trabalho com a força dos símbolos, que remetem ao passado e ao presente, como aquilo representado pela Sankofa. Os símbolos têm poder, então gosto de trazer essa luz e encantamento para o ferro, que por si só já é uma coisa bruta, forte. Quando você vê a obra com calma, já lhe causa uma certa segurança e fé, que é o que busco transpor para a minha criação.  Assine e receba! O múltiplo de arte “Ofá de Oxossi”, de Diogum, foi feito em serigrafia sobre papel canson 200g. As artes são assinadas e numeradas pelo artista e contam com certificado de autenticidade. Com novos planos e modalidades, o Clube de Assinantes da Propágulo é o ponto de encontro para quem busca colecionar e se aprofundar sobre arte. Fazendo parte deste programa, você recebe nossas revistas, livros e múltiplos de arte por um preço especial, além de garantir uma série de benefícios, como gratuidade em cursos, acessos exclusivos ao editorial do site, notícias antecipadas dos nossos lançamentos, e muito mais!

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