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  • TERRAS EM TRAVESSIA

    “Caminhar pra trás, enganar o invasor”: biarritzzz e abr0s me gritaram em 2022 através de um curupira que caminhava pra trás, acompanhado dessa frase pixada num tapume pelas ruas. Se quem me ler for uma pessoa racializada que habita os diversos não-lugares das cidades, talvez possa reconhecer a emergência que mora nesse grito. Eu reconheci que não estava sozinha. É que desde 2020, em meio às incertezas do começo da pandemia, eu já andava caminhando pra trás junto a minha mãe e duas mais velhas da família, seguindo as pistas que a oralidade foi trazendo. O medo de perder essa nossa memória viva para o enorme descaso com a vida que imperava naquele período, fez a gente usar o que tinha para documentar o que guardávamos só na oralidade: desenho, pintura e as ferramentas contidas nos dispositivos móveis. Alguns desses achados, comecei a sistematizar através da arte, enquanto artista-pesquisadora no Núcleo de Práticas Artísticas Autobiogeográficas da UFG, depois esses e outros achados se tornaram meu projeto de mestrado em Antropologia Social, pela UFPB. Vim aqui contar um pouco do que fui encontrando nesse caminho: PASSOS QUE VEM DE LONGE Comecei me perguntando se eu poderia dizer que viajar ou talvez imigrar é uma tradição ancestral na minha família... É que pelo menos desde a geração dos pais da minha bisavó (que é até onde nossa memória familiar alcança) que temos o costume de ir morar em outro lugar que não o de nosso nascimento. Nessa pesquisa, além dos achados preciosos da oralidade, eu e minha mãe descobrimos alguns documentos sugerindo que talvez essa itinerância nossa seja muito mais ancestral do que a gente imaginava. Vou contextualizar vocês. Eu nasci em Recife, já mainha nasceu em Natal e hoje em dia mora no Sul da Bahia. Sua mãe foi uma das poucas da família a arriscar sair de Limoeiro do Norte - CE pra morar numa capital (Recife), mas é a história da família do pai da minha mãe que realmente me impressionou: meu avô materno nasceu no Rio de Janeiro, mas só por que sua mãe, minha bisavó, nascida e criada numa casa de taipa no bairro do Alecrim em Natal, não queria que o filho fosse registrado como nordestino (o mesmo aconteceu com minha tia-avó, anos depois). Mas o mesmo navio que a levou pra ter os filhos no Rio, depois trouxe todos de volta pra morar em Natal. O navio em questão era onde trabalhava meu bisavô, um capoeirista cuja família é de Valença-BA e que fazia parte da tripulação da marinha. O conheci quando nem me entendia por gente ainda, no finalzinho de sua vida. A bisa cheguei a morar com ela quando criança (enquanto minha mãe viajava) e durante minha graduação em Artes Visuais até 2012, quando eu me formei e ela veio a falecer. Não sabemos precisamente de que terra vieram os ancestrais da bisa Izabel, só temos a afirmação trazida pela memória de minha tia-avó Iza e por sua prima Adilse que minha bisa era descendente de indígenas e que sua mãe, Maria, era nascida em Igreja Nova (RN) e descendente de uma família que veio do Seridó. Vó Maria era rezadeira da comunidade onde foi morar (depois de casada) no bairro do Alecrim, na época que essa região era uma periferia cujo chão era de areia branca e as casas feitas de barro, aos arredores de Natal. Com a ajuda desses e outros relatos orais vindos de duas mais velhas da minha família, cruzando com relatos do povo que hoje habita a região de seu nascimento, recriei um retrato pra Vó Maria: Vó Maria Tarairiú, geotinta, tecido e folhas de manjerioba sobre tela, por Ianah Movida pela curiosidade de conhecer os lugares que já fizeram parte da história desse ramo da minha família, comecei uma série de itinerâncias por essa nossa memória. Como já era meu costume, fui coletando amostras das terras desses territórios para minha coleção de pigmentos naturais, que fabrico artesanalmente desde 2017 no meu ateliê pra fazer pinturas. Mas agora passei a me indagar: já que não temos uma terra de onde viemos, seria essa minha forma de “ter” todas as terras por onde as itinerâncias negras e indígenas da minha família já passaram? Andei atenta às cores das terras nos entre-lugares de Recife, Valença, Salvador, Natal, Macaíba, São Gonçalo do Amarante, Acari, Currais Novos, etc. Fiz uma cartografia cromática a partir dessa vivência, numa obra chamada Travessia Demarcada (2023). Travessia demarcada, geotinta sobre tela, galhos de jurema, fios de algodão e palha da costa, por Ianah TEM GENTE MORANDO NESSE CAMINHO Nessas andanças, fui conhecendo algumas pessoas que hoje residem em alguns desses territórios, e fiquei encantada ao saber que pertinho de um dos lugares da nossa memória, tem um povo lutando por sua terra e contra o apagamento da sua história e etnicidade ¹ : A Comunidade Indígena Tapuia Tarairiú Lagoa do Tapará. Essa comunidade fica num entre-lugar periurbano da Grande Natal, entre os municípios de Macaíba-RN e São Gonçalo do Amarante-RN, da qual Igreja Nova é atualmente distrito. Fui apresentada a essa comunidade através do olhar de uma família de artesãos, que me acolheram e se reconheceram nas minhas intinerâncias familiares. Josué Kyalonã Campêlo, artesão e uma das lideranças da comunidade, e sua esposa Akriptzé, me falaram que suas famílias também são um tanto itinerantes: ele morou muito tempo em São Paulo e a família dela vem do Seridó. Kyalonã me indicou algumas leituras sobre uma possível tradição semi-nômade dos Tapuia, entre elas, o texto de Olavo Medeiros Filho ² , que afirma que eles “mudavam frequentemente de acampamento, ao sabor das contingências alimentares” (FILHO, 1999, p. 249). Foi aí que todas essas nossas andanças fizeram um especial sentido pra mim: talvez faça mesmo muito tempo que a gente seja itinerante. Fui chamada por eles pra ajudar na organização da Feira Cultural que acontece todo ano em Maio, e desde 2022 tenho me somado a essa mobilização da comunidade ajudando principalmente a fazer os materiais gráficose em 2023, a cacica Francisca me chamou pra criar a arte da camisa e do cartaz desse evento, o que fiz com muito prazer, usando como referência os grafismos que Kyalonã já usava pra ilustrar a constelação do Setestrelo (um dos símbolos da re-existência Tarairiu) em seus artesanatos. À esquerda, Design da camisa da VII Feira Cultural Tapuia Tarairiú; à direita, Maracás feitos por Josué Quando contei sobre esse encontro com o Tapará e as artes feitas pra Feira pra minha tia-avó, ela me contou que aprendeu com sua mãe (a bisa Izabel) a reconhecer a constelação do setestrelo no céu. Ela me contou que se orgulhava de ser a única na sua turma da escola a ter conhecimento da existência do Setestrelo, embora talvez já não mais soubesse da conexão ancestral que essa constelação tem com as festividades da colheita, celebrada pelos Tarairius em retomada hoje em dia. Quando mostrei a Josué Kyalonã o vídeo em que ela falava sobre essa constelação, ele me disse, em uma entrevista concedida também em vídeo: [...] o fato de você ter na família alguém que cita o setestrelo, isso é muito importante, por que nem toda família tem esse privilégio na sua história oral, na oralidade. Então se chegou até você pela oralidade é uma prova, pra nós povos indígenas, é uma prova muito forte inclusive da linhagem da tua família. (informação verbal) ³ Desde que entendi que existem grandes chances da minha ancestralidade indígena vir dessa mesma nação sertaneja, passei a usar também pontualmente o Setestrelo em algumas obras minhas, sempre que quero fazer referência a esse caminhar pra trás ou diretamente a essa ascendência. Como na obra A Visita do Setestrelo, que é o retrato de um sonho que tive enquanto estava passando um período lá na comunidade do Tapará. A Vista do Setestrelo, geotinta sobre tela, por Ianah Não pretendo com isso fazer nenhuma afirmação identitária, necessariamente, mas mais do que tudo, fazer o que foi sugerido por Sidarta Ribeiro em seu livro Sonho Manifesto (2022): saudar e honrar nossas melhores ancestralidades. POR OUTRAS ROTAS Nessa busca, além de mergulhar nas estradas entre Recife e Rio Grande do Norte, também fui buscando referências e inspirações com artistas de outros povos, que também andaram fazendo esse movimento de usar a arte para caminhar pra trás, em direção a um futuro ancestral. Como é o caso do artista Luis May, escultor e ceramista da etnia Maya, que tem seu ateliê em Cobá, México, uma das zonas arqueológicas mais extensas (e ainda não tão desvendadas) do seu povo. Luis é escultor, trabalha com cerâmica, madeira e usa o barro pra retratar pessoas da sua cidade. E além das esculturas bastante realistas, Luis também tem estudado técnicas pré-hispânicas de arte, como uma forma de despertar uma cultura que anda um pouco adormecida, mas presente, entre os seus. Esse ano, depois de ser selecionada para uma bolsa de mobilidade artística pela FUNARTE, fui aprender com Luis sobre arte e sobre a história de (re)existência ⁴ do seu povo. Luis tem se destacado nessas suas pesquisas ancestrais principalmente pelo sucesso que ele teve ao recriar a antiga (e até então perdida) receita para o Azul Maya, pigmento milenar que já foi datado em alguns templos Maya (como o de Bonampak) como uma cor que está resistindo ao tempo desde muito antes da invasão espanhola. Esse pigmento é feito a base de terra e outros ingredientes naturais que estão muito bem guardados em segredo entre os parentes de Luis. ⁵ Lá no seu ateliê aprendi a fazer cerâmica, reboco, pigmentos e aglutinantes naturais, seguindo a tradição pré-hispânica dos Maya. Aprendi também que existem outros artistas também fazendo essa re-existência ancestral entre os Maya que habitam o campo e as cidades, e que quase sempre a arte está no front em suas lutas. Artes feitas por Ianah e Luis May durante a residência artística / Acervo pessoal de Ianah Voltei do México em Maio deste ano com mais uma cor de terra na bagagem. Uma terra pintada de um azul que é natural assim como a cultura Maya que ainda molda e re-existe naquela região. Tenho minha primeira terra internacional na minha coleção, também o primeiro azul pra minha paleta. Tenho também bastante material pra transcrever nos áudios gravados em campo e muito trabalho pela frente nas minhas andanças para pesquisas artísticas e acadêmicas. E vi que de fato nem de longe estou sozinha nesse caminhar pra trás. De fato não pertenço a nenhuma dessas terras por onde passo. Não o suficiente pra dizer que qualquer uma delas seja a “minha” terra (talvez Recife, onde fui uma das poucas da família a nascer e ser criada). Mas todas essas terras pertencem às cores da minha travessia, que pelo visto já vem acontecendo há muito mais que 500 anos e há de seguir acontecendo por pelo menos uma vida inteira. Aprendi com a agroecologia que os saberes são sementes a serem dispersadas e multiplicadas. Se tudo der certo, essas sementes da memória hão de reflorestar todo o apagamento feito nas terras desse caminho. Autocultivo III, pintura com terra, por Ianah  ¹ CARVALHO, F. P. De; MARQUES, J.; FIALHO, V. Tapuias Tarairiús da Lagoa do Tapará: Origens, Cultura e Ambiente. Nova Cartografia Social do Nordeste, 2021. n. 1. ² FILHO, O. M. Os Tarairiús, Extintos Indígenas do Nordeste. Em: ALMEIDA, L. S. De; GALINDO, M.; SILVA, E. (Org.). Índios do Nordeste: Temas e Problemas. Maceió: EdUFAL, 1999. ³ CAMPÊLO, Josué Kyalonã Jerônimo. Entrevista Josué 2. [jun. 2022]. Entrevistadora: Ianah Maia de Mello. Macaíba, 2022. Entrevista Josué 2.mov (59 segs). ⁴ ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética en la encrucijada descolonial. 2a edición ed. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2009 (p. 94, rodapé). ⁵ MELLO, Ianah Maia. Diário de Campo: Residência Artística Ancestral. Cobá, México [s.I] , 2024.

  • SIMBOLOGIA ANCESTRAL NA ARTE DE DIOGUM

    Em conversa com a redatora Elizabeth Bandeira, Diogum (1986) compartilha a sua trajetória artística, desde a infância até a rotina de criação das suas esculturas em ferro. O diálogo também acompanha a história por trás da obra "Ofá de Oxóssi" e quais as principais referências que refletem no trabalho atual do artista.   ELIZABETH BANDEIRA - Qual o seu nome, sua idade e de onde você é?  DIOGUM - Olá, me chamo Diogum. Tenho 38 anos e sou um artista pernambucano, morador de Bonsucesso, bairro histórico de Olinda, que sedia o Homem da Meia-Noite.  EB - Você poderia contar pra gente quais são as suas memórias iniciais com esse material? Além disso, de que forma esses elementos são conectados com o início da sua trajetória artística?  D - Esses elementos estão presentes na minha vida desde a infância. Quando criança, meus brinquedos, até carrinhos pequenos, eram de ferro ou aço. Tinha acesso a esses materiais porque meu pai, Zaqueu, também era metalúrgico e um grande serralheiro. Era meu mestre e um cara muito sábio. Aprendi com ele a técnica, mas fui desenvolver minha arte depois de adulto.  EB - Como é o seu processo criativo? Do rascunho até a materialização do seu trabalho. D- Às vezes faço o rascunho da peça na minha bancada de trabalho, ou passo para o papel. Para as minhas esculturas de Ofá, me inspirei em pencas de balangandãs, que são jóias crioulas do século XIX. Naquela época, os ourives pretos não podiam ter as mesmas jóias que os brancos, ou da Coroa Real, então eles fabricavam seus próprios adornos. Então fui desenvolvendo várias obras que possuem um movimento que evoca leveza. Ogum, que é o senhor do ferro da tecnologia, é meu orixá. Sou ogã também, então meu trabalho é ligado ao contexto da ancestralidade e do candomblé. Por exemplo, o Ofá no múltiplo da Propágulo temos o símbolo de Xangô, um machado da justiça, o símbolo de Exu, representado por um tridente, que é o divino e o terreno, tem o Abebé de Oxum e o peixe para representar Iemanjá. Foi nesse processo de juntar as ferragens de Candomblé com os balangandãs que cheguei no resultado final da minha criação.   EB - Quais referências você mobiliza ao realizar suas esculturas e demais produções? D - Trago referências da minha ancestralidade. Quando mais novo, e ainda sem saber que meu orixá era Ogum, me levaram para jogar búzios. Essa minha ligação faz sentido, pois cresci com pessoas que trabalhavam com metal, um material fundamental para o estreitamento das relações com esta entidade. Eu pratico capoeira e também toco afoxé, então tudo que faço tem pertencimento e força da ancestralidade. Além disso, minha companheira Silvana, que também é artista plástica, me dá muitas dicas e também participa do meu processo. Exposição Ferro Ifé: O Atlântico Negro de Diogum, individual do artista com curadoria de Bruno Albertim na Galeria Amparo 60, em cartaz de 04 de junho a 05 de setembro. Fotografias: Danilo Galvão EB - Como é ser um artista negro, que é autor de uma obra tão política e ancestral, e adentrar espaços ainda muito envoltos pelos códigos da branquitude, como são as galerias de arte?  D - O meu processo dentro das galerias está sendo muito importante para mim, mas acredito que está sendo ainda mais importante para as pessoas que as compõem, e aos tantos pretos que, ao me verem ali, também sabem que é possível ocupar esses espaços. As artes visuais sempre foram um lugar de branquitude e de uma elite branca, por conta disso nós vemos ainda tantos artistas pretos com um talento incrível, mas que ainda não estão dentro desses lugares. Enxergo nesse momento que estamos vivendo uma força ainda maior ao trabalho de artistas negros, que se destacam por sua originalidade, como Jeff Alan e Derlon Almeida, por exemplo.  EB - Quais discussões você busca reverberar com as suas obras? D - Gosto de trazer o conceito da ancestralidade, tanto em sua beleza, como na proteção, nas minhas obras. São esculturas que trazem esse axé e harmonia para dentro de casa. Trabalho com a força dos símbolos, que remetem ao passado e ao presente, como aquilo representado pela Sankofa. Os símbolos têm poder, então gosto de trazer essa luz e encantamento para o ferro, que por si só já é uma coisa bruta, forte. Quando você vê a obra com calma, já lhe causa uma certa segurança e fé, que é o que busco transpor para a minha criação.  Assine e receba! O múltiplo de arte “Ofá de Oxossi”, de Diogum, foi feito em serigrafia sobre papel canson 200g. As artes são assinadas e numeradas pelo artista e contam com certificado de autenticidade. Com novos planos e modalidades, o Clube de Assinantes da Propágulo é o ponto de encontro para quem busca colecionar e se aprofundar sobre arte. Fazendo parte deste programa, você recebe nossas revistas, livros e múltiplos de arte por um preço especial, além de garantir uma série de benefícios, como gratuidade em cursos, acessos exclusivos ao editorial do site, notícias antecipadas dos nossos lançamentos, e muito mais!

  • A FAMÍLIA CARNEIRO DA CUNHA

    Nesta entrevista que se tornou base para o texto Wilson, o fotógrafo ímpar , sobre o fotojornalista recifense Wilson Carneiro da Cunha na revista Propágulo 09, Guilherme Moraes conversa com Bia Lima, neta de Wilson e pesquisadora de sua produção fotográfica. No material é possível perceber a importância de outros personagens que contribuíram para o legado do fotógrafo, como Conceição Carneiro da Cunha, sua esposa e idealizadora do célebre Kiosque do Wilson, Olegária Carneiro da Cunha, filha mais velha do casal e guardiã do acervo imagético da família, e Wilson Carneiro da Cunha Filho, por muitos anos o assistente oficial de seu pai. Guilherme Moraes - Wilson Carneiro da Cunha possui uma produção vasta em fotografia. Como foi criar o recorte para a sua pesquisa, que atravessa os instantâneos de rua e os registros caseiros? Bia Lima -  No e-book¹, busquei fazer uma cartografia de como o meu avô perpassa a história do centro. Wilson Carneiro da Cunha é um personagem do centro, viu e registrou muitos acontecimentos, viveu aquilo ali intensamente. O centro do Recife era a vida dele. Acho que ele passava mais tempo na rua do que em casa. Ele se encontrava em um contexto de privilégio, e por isso tinha acesso a eventos sociais, a festas em clubes, à polícia! Falo de uma época em que trabalhar como fotógrafo era algo informalíssimo. Ele se intitulava fotojornalista. Mas, pesquisando sobre seu acervo, notei que existe uma linguagem própria, com características fortes dele, uma série de escolhas estéticas feitas para retratar o Recife. Parte disso pode ser questionado, né? Ele também tirava fotos das pessoas na rua, de outros personagens do centro. Era comum que trouxesse uma glamourização para o que retratava. Wilson era apaixonado pelo imaginário de Hollywood. Olha essa foto aqui! No desfile de 7 de Setembro, ele tirando foto da pomba que atrapalhou o desfile. O guarda de quatro! Esse é outro aspecto da sua produção: os flagrantes. Ele gostava da ideia de tirar fotos sem que a pessoa percebesse. Foto de menino fazendo cocô no rio, de meninos pulando da ponte, de bêbado fazendo xixi no poste… Ele abraçou mesmo essa estética.  GM - Então ele realmente não tirava a Câmera do pescoço. BL -  Minha mãe, Ramona, dizia que ele ficava colado com a câmera, como se fosse um membro dele. Ele vivia com a Rolleiflex para todo canto. Outro aspecto que acho icônico e que faz parte do imaginário do centro do Recife daquela época é a ideia do Kiosque! Aquele lugar que funcionava tanto como uma galeria quanto um lugar onde ele vendia seus serviços enquanto fotógrafo. Embora eu tenha procurado, nunca fiquei sabendo de nenhum outro quiosque específico de fotografia aqui em Recife ou em um outra cidade do Brasil. Por conta do Kiosque é que ele começou a ficar conhecido. Ficava na Rua Nova, no oitão da Igreja de Santo Antônio, quando ainda passava carro por lá, então era um agito absurdo! GM - Percebo que Wilson era conhecido por ter uma certa excentricidade. São diversos os fatores: o Kiosque é um desses elementos, mas ele colecionava restos de demolição, tinha a mão mais escura que o corpo porque revelava as fotografias sem proteção…  BL -  Quando comecei a entrevistar meus tios e minha mãe, notei que eles nunca tiveram essa percepção distanciada de quem fora Wilson Carneiro da Cunha, porque era parte da rotina deles, mas ele realmente era alguém singular. Tanto tinha um lado de ser uma pessoa engraçada, extrovertida e tiradora de onda quanto de um lado mais rigoroso dentro de casa, como se tivesse 2 personalidades. Acho que ele tinha uma persona da rua, criada para comunicar essa pompa. Para a minha pesquisa, me apeguei mais a isso. Quis focar realmente na estética dele: o Kiosque, a marca registrada de Wilson… O que acho incrível é a jogada de marketing que ele tinha na época, em plenos anos 50. Wilson carimbava todas as suas fotografias com a marca e o endereço do Kiosque. Ele queria ser notado, queria ter tudo do bom e do melhor, ter a câmera mais nova… Dizia que fora a primeira pessoa da cidade a ter revelado em colorido. Você nunca vai ver um look  repetido nas fotos em que ele aparece. A roupa tinha que ser chiquérrima. O carro precisava ter a placa personalizada com o número da sorte dele, 7004, e com “Wilson Foto” escrito. Ele usava camisa florida numa época em que nenhum homem por aqui usava. Na frente de sua casa, por exemplo, constava a placa “Wilson da Cunha, repórter fotográfico”. Pra todo mundo saber que ele morava ali! Ele dizia que tinha ido para os Estados Unidos, saia dando entrevista no jornal, mas era tudo invenção da cabeça dele, que criava para alimentar essa persona. Ele tinha esse fascínio pelas revistas, pelo cinema… tudo girava em torno disso. Na casa dos meus avós tinha aquelas fotos antigas de atores de Hollywood. Ele era o marketing em pessoa, entendeu? Na época ele bombou, soube vender o seu produto e realmente criou os 5 filhos com o dinheiro das fotos. Eles também tinham um apreço por objetos, livros e revistas. Minha avó, principalmente, era uma intelectual, ela lia pra caramba. Eles eram bem acumuladores! Quem guarda muita coisa é minha tia Olegária, que tem 80 anos. Além de documentos, são pilhas e pilhas de fotos reveladas e de negativos guardados. O sonho dela sempre foi abrir um museu da família Carneiro da Cunha. É que paira na família essa coisa de ter um parentesco com o abolicionista José Mariano²... Mas o acervo está disponível para mim. Penso em doar para a Fundação Joaquim Nabuco, mas ainda não fiz isso porque minha tia é apegada ao acervo. É o maior tesouro da vida dela. Parte da produção de Wilson já está na Fundaj. Ele vendeu um segmento do seu acervo para a instituição quando fechou o Kiosque na década de 1980.  GM - Qual era a participação de sua avó, Maria Conceição Carneiro da Cunha, nessa história? Gostaria de saber como ela se sentia nesse contexto. Vocês se conheceram? BL -  Conheci a minha avó já coroa. Quando eles casaram, ela tinha uns 16 anos e, ele, uns 24. Ela não era aquela esposa tradicional, que faz almoço, que arruma a casa… Não. Ela ficava dentro de casa lendo livros e fumando — ela fumava bastante quando lia. Mas eles sempre tiveram alguém para ajudar em casa. Realmente eles conseguiram viver dentro desse padrão de classe média. Moraram por muito tempo no centro do Recife, na rua da Alegria, em uma casa dessas bem comuns do centro.  Quando saíram de lá, buscaram morar na Zona Norte. Saíram do centro, que talvez já tivesse começado a mudar. Só que Wilson continuou trabalhando lá. Ela trabalhava com ele, era a cabeça por trás de muitas coisas, como a criação do Kiosque. Ele tinha essa pose de intelectual, mas era ela! Ela lia e pesquisava pra caramba e falava tudo para ele. Wilson então saía dizendo as coisas que aprendia com ela por aí. Ela passava o dia lendo, esperando meu avô, que trabalhava muito na rua, de noite. Porque ele cobria muita festa, casamento… Ele não parava de trabalhar. Até os anos 70 eles revelavam todas as fotografias em casa. Depois, quando foram melhorando as condições financeiras da casa, começaram a mandá-las para laboratórios. Além do meu avô e da minha avó, tem outra peça fundamental nessa história: o meu tio, que se chamava Wilson também. GM - Sim, tio Gringo. BL -  Tio Gringo passou a vida toda trabalhando com meu avô, que fez um negócio a partir da família. Minha tia Olegária não tanto, acho que na época não seria coisa de mulher, mas tio Gringo era o assistente oficial. Os dois tinham uma relação conturbada. Meu tio era gay. Todo mundo já sabia, era uma coisa escancarada. Ele não foi o primogênito normativo que Wilson queria. Depois de um tempo, nos anos 70, ele partiu para Salvador e se soltou na vida.  Acontece que o meu tio Gringo também tirava fotos e quando ele se mudou, continuou a fazer isso. Ele fazia roupas de Carnaval, de pedraria, bordadas… Viveu uns bons anos com HIV, mas morreu de um câncer. Ele veio para Recife quando já estava bem malzinho. Ficou no IMIP. Dizem que todo mundo do hospital era apaixonado por ele, porque era uma figura. Tenho muita vontade de puxar a pesquisa para ele, porque devem ter pérolas! Ele tirava fotos de desfiles, tem toda uma série de registros de trabalho, mas também tem as farrinhas dele. Tem umas fotos dos boys, umas dele mesmo lá… Esse acervo está comigo. GM - Penso que uma grande quantidade dos autorretratos de Wilson foram clicados por ele. BL - Com certeza! Os circos também eram uma constante na produção de Wilson. Eu não sei se você viu essa foto. Sério, eu acho uma das mais icônicas. É bizarra, mas eu amo essa foto. É meio creepy  um palhaço com meu tio Gringo no colo. Já rodei para achar o nome desse palhaço, mas não achei registro nenhum. Meu avô era viciado no circo. Se tivesse circo na cidade, ia todo domingo. Ele adorava todo tipo de espetáculo. Quando a rainha Elizabeth veio, ele tirou foto. Quando Juscelino Kubitschek veio, ele tirou foto.  GM - Você tem alguma noção do posicionamento político de seu avô? Uma boa parte de sua trajetória e da existência do Kiosque atravessa a ditadura militar no Brasil. BL - Ele tinha coisa de ser faladeiro. Mandavam ele calar a boca porque ficava falando mal dos militares lá no Kiosque. Mas, até pelo privilégio de ser um homem branco, cis e de classe média, ele poderia muito bem ter tirado fotografias de denúncia, mas não achei nenhuma do tipo. Como trabalhava para a polícia, talvez tivesse que encobrir algum posicionamento. Sei que não era facista, não achava a ditadura algo bom, mas o real posicionamento dele eu não sei. Ele trabalhou para o prefeito Augusto Lucena³, para todo canto que o prefeito ia ele tinha que ir atrás. Só que era o trabalho dele, tinha que fotografar. Foi por conta disso que ele tirou a foto da demolição da Igreja dos Martírios⁴. Quando eu descobri isso, deu uma virada de chave, porque Wilson foi o único fotógrafo a cobrir essa demolição. Essas fotos estão na Fundaj, são uma sequência incrível! Tem um monte de foto de Augusto Lucena, de baixo para cima, para passar uma pose de força, tem foto dos trabalhadores, tem fotos de ângulos Interessantes de mostrar. De alguma forma, ele estava dentro da máquina. Sei que ele detestava um irmão que era militar, mas, ao mesmo tempo, conhecia um monte de gente, todo mundo passava pelo Kiosque. Então acho que ele fazia essa boa praça.  GM - Hoje vivemos em torrentes de imagens, mas imagino como deveria ser impressionante a experiência de dar de cara com o Kiosque, com um acervo enorme de imagens disponíveis no meio da rua naquela época. BL - Uma coisa interessante é que ele fazia questão de mostrar seu trabalho considerado mais autoral. Tinha a parte que era para o povo comprar, os cartões postais de vistas da cidade do Recife. Mas tinha a parte do trabalho com a qual ele se identificava mais, muito atrelada ao que seria o perfil de um fotógrafo etnógrafo. Eram categorizadas por ele como “tipos populares”. Ele expunha no Kiosque como se dissesse “Eu faço isso aqui também”. E conseguia vender!  GM - Wilson foi fotógrafo em um momento anterior ao surgimento de especializações e perfis desse tipo de profissional. Era etnógrafo, apreciava o flagrante, cobria eventos, notícias, casos policiais, tirava retratos, entre tantas outras coisas. Mas, em casa, surgia um tipo específico de fotografia: as encenadas, dirigidas por ele, em que a família participava. Como era para sua avó, tios e mãe fazer parte desse processo?  BL - Eles odiavam! Minha avó detestava ser fotografada. E a toda hora ele inventava um novo ensaio! Vamos supor que ele comprava 10 rolos de filme para fazer um trabalho e gastava 7 deles. O que sobrava, ele usava para fotografar a família. É foto que não acaba mais! Ele criava um cenário com as frutas, com as taças, com todos na mesma pose em fotografias diferentes diante da geladeira nova — porque tinha que mostrar a geladeira mais nova do mercado e dizer “Eu fui a primeira pessoa a comprar a geladeira” através das fotos. Ele adorava aparecer e transparecer. Tinha uma joalheria lá perto do Kiosque. Toda vez que chegava alguma coisa nova, já dizia “Está separado para Conceição!” e chegava com um colar ou um brinco novo para minha avó. A imagem era muito importante para ele, e por isso ela também vivia nos trinques. Ela costurava as roupinhas iguaizinhas das filhas. Era como se a persona que ele criou tomasse conta da família toda. Mas eles se irritavam, minha mãe disse que tinha hora que ela não queria, mas tinha que participar. Era uma coisa obsessiva! Olha essa foto aqui: isso foi no hospital quando minha avó foi ter filho, ele tirando foto dentro da sala de parto. As enfermeira consternadas, minha avó amarrada na cama… Que coisa bizarra! Tem umas coisas doidas, “Não olha para a câmera, olha pro Horizonte!” e por aí vai, ele tinha essa pira com Hollywood, então acho que ele pegava muita referência de fotos de revistas americanas e europeias. GM - Um série que acho muito peculiar é a das fotografias da Cheia de 75⁵, em que ele fotografou a casa em que morava com sua família alagada, sem abrir mão de uma encenação diante da câmera.   BL - Eu acho essa série demais! Está acontecendo uma enchente e a pessoa vai tirar fotos! E ele ainda dirigia, dizia em que lugar cada um tinha que estar. Fui assistente por um dia do meu tio Ramon, que também virou fotógrafo, e percebi que ele também tinha esse jogo da direção da foto. Eu saquei que era por conta do pai que ele fazia isso. É curioso, apesar de Wilson gostar do flagrante, ele tinha essa jogada de querer montar uma cena, dizer uma história com a foto. GM - Acho que foi em 2019 quando saímos para tomar um café e você me falou que estava pensando em escrever o projeto que virou esta pesquisa. Penso nesse recorte de tempo dessa conversa até esta em que nos encontramos. Deve ter sido muito valioso encontrar seu avô ao longo desse processo. Obviamente é um processo de descobertas de sabores diversos.  BL - Apaixona, né? É um misto. Quando fui à Fundaj e vi as fotos que eles têm em acervo, eu comecei a chorar. Foi muito forte, em alguns momentos eu pensei “Meu Deus, eu poderia ter tirado essa mesma foto!”. Eu teria feito exatamente igual. E por muito tempo eu nunca tinha visto uma referência dele quando comecei a fotografar. Conhecia as fotos das festas de aniversário, da minha mãe pequenininha, mas não as da cidade, do centro, do Kiosque, das pessoas na rua. Quando eu fui para a Fundaj vi a magnitude do acervo dele. Foi ali que notei que precisava pesquisar o que não estava lá, os flagrantes e recortes domésticos que estavam em caixas na casa da minha tia e fazer alguma coisa com aquilo.   ¹ Lima, Bruna; Ferrer Bruna Rafaella, Kiosque do Wilson [livro eletrônico]: Wilson Carneiro da Cunha: do instantâneo de rua aos registros caseiros, Recife, PE : Ed. das Autoras, 2023. Disponívem em < https://drive.google.com/file/d/1xZi4EYfm1Bn14-BEjibME7VNqiJbWSw0/view?pli=1 > ² José Mariano Carneiro da Cunha (PE -1850–1912) foi um político, abolicionista, jornalista, bacharel em direito, deputado federal e vereador da cidade do Recife. Foi deputado federal de Pernambuco (1878, 1882, 1885, 1890, 1894, 1897, 1912). Fundou o jornal A Província, com filosofia abolicionista. Ingressou na carreira política no Partido Liberal, ao lado de Afonso Olindense, João Barbalho Uchoa Cavalcanti, João Francisco Teixeira, João Ramos, José Maria de Albuquerque Melo, Luís Ferreira Maciel Pinheiro, com os quais traçou as bases do Movimento Abolicionista de Pernambuco. A partir de uma reunião marcada por João Ramos, junto a outros abolicionistas pernambucanos, fundou o Club Relâmpago, depois transformado em Club do Cupim, associação abolicionista que intensificou a campanha contra a escravidão em Pernambuco por meio de instrumentos fora da legalidade, como a organização de fugas e o transporte de cativos para fora da província. ³ Augusto Lucena (PB - 1916-1995) foi deputado estadual de Pernambuco em três legislaturas (1954, 1958, 1962); Vice-prefeito do Recife em 1963, assumindo a prefeitura em 1964, com a deposição do governador Miguel Arraes e do prefeito Pelópidas da Silveira pelo Golpe de Estado no Brasil em 1964; Vereador do Recife em duas legislaturas (1968, 1975); Deputado federal em duas legislaturas (1970, 1978); Prefeito do Recife - nomeado por indicação do governador de Pernambuco Eraldo Gueiros Leite (1971-1975). Polêmico e arrojado em alguns atos, teve contra si a mídia e boa parte da opinião pública, ao derrubar o que restava da Igreja dos Martírios, monumento tombado pelo Patrimônio Histórico, para abrir a continuação da Avenida Dantas Barreto, onde hoje existe o Camelódromo, construído em administração posterior à sua. ⁴ A Igreja do Bom Jesus dos Martírios foi uma igreja localizada no Recife. Tinha um valor artístico grande, com sua fachada em estilo rococó. Foi alvo de uma disputa entre a municipalidade (na pessoa do prefeito Augusto Lucena) e a intelectualidade recifense. O prefeito Augusto Lucena viu-se diante da Igreja dos Martírios, que lhe impedia o andamento das obras de urbanização do Centro do Recife. Até então a igrejinha não era tombada. Embora o IPHAN tenha iniciado o processo de seu tombamento da igreja, na tentativa de impedir sua demolição, Augusto Lucena solicitou ao Governo Federal seu destombamento. Enquanto alguns técnicos enviados pelo governo deslocavam-se ao Recife para avaliar a solicitação, o prefeito, em antecipação, conseguiu derrubar parte de sua fachada. O prefeito então conseguiu o destombamento da igreja, que foi demolida, dando lugar à Avenida Dantas Barreto. ⁵ A enchente de 17 de julho de 1975 começou em uma tarde de quinta-feira e terminou após dois dias. 80% do Recife foi coberto por água. Foram registradas cento e sete mortes.

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