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FRÁGIL PELE DA MEMÓRIA

  • Elizabeth Bandeira
  • 4 de abr.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 24 de nov.

Em uma sala ampla de piso de madeira, iluminada pela luz do entardecer que entra pelas janelas, uma pessoa de pele negra clara e cabelos cacheados, volumosos e na altura dos ombros, está sentada em uma cadeira de plástico branca, no centro da composição. Veste uma blusa branca sem mangas, com amarrações laterais, calça bege de corte reto e sapatos pretos robustos com meias brancas. Cruza as pernas e mantém os braços apoiados nos joelhos, olhando fixamente para frente. Na parede ao fundo, à esquerda, há um quadro de moldura escura com tons de azul, verde, marrom e laranja, sugerindo uma paisagem com elementos fantásticos. À direita, preso à parede, há um objeto escultórico orgânico, que se abre em hastes irregulares, como uma aranha ou estrela. No chão, sob a escultura, há um pequeno arranjo de tiras de argila, como galhos.

Buscar o que se deseja é submeter-se à fragilidade da exposição. Entender-se tangível, capaz de fissura e, por que não, ao haver afinidade de sentimentos, transcender a própria matéria através deste querer. São diversas as criações que dialogam com manifestações distorcidas da atração inconsciente, as quais só podem ser entendidas dialeticamente em relação à vida desperta de quem sonha. No entanto, não há provas de que qualquer pessoa que observe o trabalho de amorí (Ribeirão - PE - 1995) em algum momento acorde do sonho ao qual foi lançada. Seja a escultura Sinda, uma estrela que tinha como grande aspiração despencar do céu e num mergulho profundo se encontrou com o mar, ou por meio dos mistérios expostos na tela de Alvorada dos desejos, observa-se como cada obra proposta pela artista está no ponto de fronteira entre o que é possível de recordar de sua história e o que é preciso imaginar, perseguir, a fim de agenciar a lembrança do que um dia foi experienciado, seja por seus próprios ancestrais, seja pela esmaecida versão de quem outrora se foi. 



Detalhes da obra "Alvorada dos desejos", óleo sobre tela, por amorí. Fotos: Fefa Lins


Ao investigar os rastros do seu passado artístico, amorí rememora que, desde criança, sempre foi encantada pela mistura, pelo teste. Embora consiga agora direcionar o seu trabalho de maneira mais assertiva, o mesmo ainda é carregado de experimentalidade e isso passa pelos materiais que pesquisa, sempre escolhendo aqueles que a chamam mais atenção. Foi o fascínio pelo tridimensional e a ideia de pele exposta que a fez ir além da aquarela, muito plana e lisa, para mergulhar, em 2020, em materiais de distintas texturas: gazes, ataduras, gesso e látex passaram a fazer parte da sua feitura. 


“De início, ainda experimentava com vermelho, o que trazia uma visceralidade interessante para o trabalho, mas cansava ser tão feral. Entendo que esse período era de expurgo, mas, internamente, com o tempo, foram surgindo outras necessidades. Hoje já transito por uma seleção cromática completamente diferente, mais aterrada, e que investiga cores como o Azul da Prússia e Amarelo de Níquel. Minha pintura é como um retrato do que faço no tridimensional".


Em uma parede clara estão suspensos vários elementos verticais, como cordas ou tranças, feitos de diferentes materiais. Cada peça é única: algumas são enroladas com tecidos de cores terrosas, outras contêm fibras naturais soltas, tranças espessas, fragmentos de couro, cerâmica ou metais em forma de anéis, espirais e cilindros. Há também fios finos e soltos nas extremidades. As texturas variam entre lisas, rugosas, macias e rígidas, criando um aspecto híbrido entre natureza e artifício.

A pintura apresenta uma cena onírica em tons terrosos, azulados e esverdeados. No primeiro plano, à esquerda, há formas arquitetônicas em vermelho-escuro que lembram paredes ou estruturas inacabadas. À direita, um retângulo marrom funciona como mesa, sobre a qual repousam objetos indefinidos e fitas coloridas, que se espalham pelo chão. No centro, destaca-se uma grande tela branca, semelhante a uma tela. Atrás dela, o horizonte é formado por uma linha de morros escuros com pequenas hastes verticais, lembrando cercas ou estacas. O céu, que ocupa a maior parte da tela, é turvo e nebuloso, com manchas verdes, azuis e douradas. Nele, aparecem figuras flutuantes: fitas vermelhas sinuosas, que parecem sair de blocos avermelhados suspensos no ar. Uma dessas fitas se conecta a um objeto branco e felpudo, pendendo do alto. Mais ao fundo, no canto superior direito, há um rastro claro em diagonal, parecido com um cometa ou fumaça.

"Quando estou desenvolvendo esculturas, até rabisco, mas ainda assim sem tanto compromisso com o croqui. Essas formas vão surgindo intuitivamente, a partir da mistura, do teste com materiais disponíveis. Para além da experimentação, existe o meu imaginário, tudo que já vivi, memórias”, disserta a artista ao falar sobre a escolha por trás dos seus materiais de ofício e os impulsos de criação que os mesmos viabilizam".



O processo de criação para amorí também é tomado por muitas interlocuções culturais e de visualidade, sendo a colega de profissão Rayana Rayo uma grande referência à sua prática. “Também gosto muito de Ivens Machado, porque ele trabalha com material de reuso. Sonia Gomes, pois ela traz a torção e a experimentação mais livre das formas que vão surgir a partir das envergaduras, questões que pesquiso também. Brígida Baltar me fez repensar meus registros enquanto artista, inclusive desbloquear a questão dos croquis para as minhas esculturas. O ‘Projeto Terra’, do Juraci Dórea, me despertou o desejo de trabalhar com estacas de madeira, que já trago a ideia atualmente em algumas pinturas. Tenho apreço também por Miguel dos Santos”, lista a artista.


Pessoa de cabelos cacheados e volumosos, veste uma blusa sem mangas branca e calça clara. Ela está sentada no chão de madeira envernizada de um espaço expositivo iluminado pela luz natural que entra por uma porta envidraçada ao fundo. De pernas cruzadas, inclina o corpo para a frente, manipulando pequenas esculturas feitas de gravetos cilíndricos de barro sobrepostos. Ao redor, algumas obras estão penduradas nas paredes brancas, e uma escultura suspensa desce do teto.

Existem lembranças da Zona da Mata Sul, longe do campo das Artes, que influenciam e ganham forma até hoje nas telas de amorí. Uma delas é que, por ter crescido nas terras pertencentes a uma família muito abastada, os campos abertos e imensas edificações da propriedade tornaram-se referências que carrega na construção das imagens e perspectivas presentes nas suas pinturas. A outra, que não se posiciona enquanto memória, mas justamente a falta dela, está no descontentamento com o escasso acesso a uma importante parte da sua história. A fim de esquivar-se dos danos da desterritorialização da Mata Sul, amorí percebe em sua produção, tanto a escultura como a pintura, um resgate, de modo que propõe um “discurso dialógico entre a rede que desenha o espaço, o corpo, o vazio e seu lugar no mundo como comunicação" ¹.


A pintura apresenta um fundo esverdeado escuro, com bordas largas em tons terrosos, esbranquiçados e alaranjados que criam uma espécie de moldura difusa. No centro da tela, dispostos em linha horizontal, estão diferentes objetos que parecem ser ornamentos ou amuletos feitos de cordas, fios e franjas coloridas. À esquerda, há uma guirlanda circular volumosa, formada por tiras vermelhas e brancas. Ao lado dela, um laço irregular, composto por cordões azul-escuros e avermelhados, pende suavemente com pequenas franjas nas extremidades. Mais à direita, uma sequência de sete pendentes verticais se organiza de forma ritmada. Cada um possui cores e formatos variados, combinando vermelho, azul, branco e bege. Alguns apresentam franjas tufadas, outros se torcem como tranças, e há ainda exemplares com laços ou nós ornamentais.

Escultura de grandes dimensões, instalada diretamente sobre o chão cinza. A obra é composta por duas estruturas principais, feitas de galhos finos e metálicos que se ramificam em várias direções, lembrando raízes ou organismos em expansão. Esses galhos estão parcialmente revestidos por tecidos, fibras e materiais têxteis de cores variadas — predominam tons terrosos como marrom e ocre, além de branco, verde, azul e pequenos pontos de preto. Das duas estruturas centrais, partem longas extensões que se arrastam pelo chão, como cordões ou tentáculos. O revestimento desses prolongamentos alterna trechos volumosos de tecido e lã branca com segmentos mais finos, com textura irregular. O fundo da sala é branco, sem outros elementos visíveis.
Foto: cortesia da Galeria Luis Maluf

É na prática diária, portanto, que o trabalho de amorí vai se configurando como uma forma de navegar no tempo, ou “uma espécie de episteme – ou outra sondagem, de revelações de campos privados, onde seria então uma espécie de ato desejante”². Para a artista, o desejo e a imaginação são pontos marcantes que atravessam sua poética enquanto agentes transformadores. “O meu trabalho tem sido cada vez mais importante para mim, de forma que construí nas telas e esculturas esse lugar onírico e fantasioso que muitas vezes tem me faltado. A supressão do que seria essa magia no estado de vigília reflete verdadeiramente na minha produção”. 

 ¹ A esse respeito, ver Mónica Amor, Entre espacios: la Reticulárea y su lugar en la historia. Gego, a catalogue of the exhibition at the Fundación Cisneros and Museo de Bellas Artes de Caracas, 2003.


² HERKENHOFF, Paulo. Autonomous doodles, verbal scrawls and erasures on drawing in South America. In: RAMIREZ, Mari Carmen (ed.). Re-Aligning Vision: Alternative Currents in South American Drawing. Austin: The University of Texas at Austin, 1997. p.72-85.




 
 
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