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ANA NEVES: EXERCÍCIOS DE DERIVA IMAGÉTICA

  • Elizabeth Bandeira
  • 20 de mar.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 24 de nov.

Ao transitar entre desenho, pintura e literatura, Ana Neves (São Vicente Férrer - PE - 1998) investiga dinâmicas de migração, fluxo, mudança e identidade. Nesta entrevista à Propágulo, ela compartilha as principais referências visuais e poéticas que permeiam sua produção, elementos que comportam seu repertório artístico, detalhes do seu processo criativo e a relação entre suas obras e vivências pessoais.

Fotografia de uma mulher de pele negra clara, cabelos pretos crespos e volumosos, soltos em formato arredondado. Ela olha diretamente para a câmera com expressão séria. Veste uma blusa verde-oliva sem mangas e um colar de contas marrons. Ao fundo, estão duas grandes obras de arte em papel. À esquerda, um desenho em grafite de um rosto com dentes à mostra e expressão agressiva, com algo que parece um objeto quadrado apoiado na cabeça. À direita, um desenho em grafite sobre fundo amarelo mostra dois rostos humanos com expressões de apatia ou estranhamento, cobertos por texturas semelhantes a escamas de cobra. As obras estão presas em uma grade metálica branca.

ELIZABETH BANDEIRA - Atualmente você está situada em Recife. A saída da sua cidade natal, São Vicente Férrer, afetou de alguma maneira suas produções? 


ANA NEVES - Vim para Recife no começo da minha adolescência, mas essa mudança influenciou muito na minha linguagem artística, pois muitos símbolos que uso em obras vêm desse fluxo de ter saído de uma região de Mata para cá. Hoje em dia, essa questão é muito menos sensível para mim do que era há alguns anos atrás. Eu vislumbrava conseguir manter a minha vida morando lá, pois sempre foi muito caótico para mim viver na capital. É muita informação. Sentia falta das experiências mais simples: poder ir para escola andando devagar, conhecer as pessoas e as pessoas me conhecerem, o clima da região, menos horários rígidos, menos trânsito, menos conflito, enfim. Queria voltar, mas também tem a parte que é muito grave da região da Mata, que é não existir investimento algum para que se trabalhe com o que eu trabalho. 


A pintura apresenta duas cenas sobrepostas. Na parte superior, contra um fundo escuro, há uma casa esquemática com telhas avermelhadas, paredes claras e janelas delineadas em tons alaranjados. A casa está levemente inclinada, como se estivesse flutuando. Na parte inferior, sobre fundo claro, aparece uma figura humana nua em vermelho, de traços alongados. O corpo ergue um braço em direção à casa, em gesto de sustentação ou conexão, enquanto os pés se firmam no solo. Ao redor da figura, manchas vermelhas se espalham em movimentos orgânicos, lembrando respingos ou extensões do corpo.
Eu levava uma casa inteira na cabeça, acrílica sobre eucatex , por Ana Neves

EB - O seu repositório criativo abarca materialidades variadas. Queria saber qual foi a primeira dessas técnicas que você teve interesse em investigar mais sobre.


AN - Sempre fui uma criança que gostava de desenhar. Minha mãe percebeu isso e me colocou na Escolinha de Artes do Recife¹, no bairro das Graças. Comecei a pintar lá, mas sem pretensão profissional. Teve um dia que uma galera foi até essa escolinha para fazer um grafite na parede e eu pensei: “Poxa, é isso que eu quero: cor, movimento e expressão!”. Nunca considerei essa minha aptidão como uma profissão possível, e só fui entender isso com mais tranquilidade depois de uma certificação acadêmica e validação das pessoas que me afirmavam que, sim, o que eu fazia desde os 12 anos de idade podia ser uma carreira. 


EB - A pintura é um ponto marcante no seu repertório. O que te aproxima dessa linguagem?


AN - Meu nome começou a circular mais com a poesia e a literatura, pois auto publiquei dois livrinhos intitulados Macambira e PAFALA, que, além dos textos, continham ilustrações que geraram interesse no público. Acho que o desenho é o ponto marcante do meu repertório, porque, por mais que goste de pintar, e tenha feito isso com mais frequência, essa expressão ainda é uma grande questão para mim. É um processo confuso, no qual fico encarando muito a tela até gostar de algo, tentando acessar as cores. Nesse sentido, minha seleção cromática é composta apenas das cores primárias e o branco, não gosto de cores prontas e tento conseguir tudo apenas com essa paleta.

Em primeiro plano, uma pessoa com pele negra, cabelos crespos em corte volumoso e solto, veste uma roupa curta de alças finas na cor verde-escura. Ela está sentada em uma poltrona clara com braços de madeira, pernas cruzadas, e gesticula com a mão direita enquanto fala, olhando para frente. Ao fundo, vê-se um espaço com paredes alaranjadas e uma estrutura metálica branca em forma de grade, onde está afixada uma pintura em papel. A obra mostra uma figura humana estilizada, com rosto esverdeado e membros alongados, em tons de preto, marrom, bege e branco. À direita, há um cavalete de madeira apoiado na parede. À esquerda, aparecem materiais de ateliê como baldes, estantes e pincéis.

EB - Algumas figuras costumam aparecer com frequência nas suas telas. Como se dá o estudo dos símbolos na sua pesquisa visual? E por que essa repetição?


AN - As imagens que crio existem na pretensão de reformular lembranças, memórias, alcançar o momento vivido através das várias mudanças que a gente faz, do recorte até a edição. Um símbolo que uso bastante é um círculo fracionado, pois lembro de uma janela incomum que vi quando criança. Eu me sentia enfeitiçada por aquele “relógio meio sol”. Esses elementos aparecem em minhas produções como forma de me aproximar de imagens que já existem dentro de mim, mas que não me rodeiam mais. 


EB - Como é para você a elaboração dessas figuras humanas? São personagens? 


AN - Eu começo pela busca do meu próprio rosto, só que não me olho, não olho para nada para desenhar. Tento trazer da memória: começo pela mancha, e, na busca pela minha face, acabo encontrando no meio do caminho a de um parente. Esses rostos também são personagens de textos que escrevo. 


À esquerda: Oiça, acrílica sobre papel paraná. À direita: Evidenciar, acrílica sobre tela.


EB - Quais memórias e temáticas seguem rondando a sua produção?


AN - Sair de São Vicente e ter vindo muitas vezes para Recife pela estrada me deu muitas imagens de velocidade, de trânsito, de mudança. A região da Mata concentra a monocultura da cana-de-açúcar até hoje, mas a minha cidade exporta banana nacionalmente. Passava por bananais, canaviais e chegava em Recife. Quando as coisas não davam certo por aqui, voltávamos para São Vicente, então as temáticas de fluxo e refluxo acompanham minha produção. 


EB - Entre o rascunho e a materialização do trabalho, quais as etapas do seu processo criativo?


AN - Quase não há rascunho. O processo já acontece diretamente na superfície. À medida que vou fazendo, as surpresas surgem, pois não quero criar uma caixa de impedimento ao trabalho. O processo é tão importante quanto a obra no final. Sobre minha rotina, passo a tarde até a noite pintando no ateliê e meu processo está muito próximo do texto. Enquanto desenho, também vou escrevendo, e a imagem, muitas vezes, é reflexo da minha escrita. Se eu começo uma pintura e não consigo desenvolvê-la, já começo outra — é como se precisasse descansar desse mundo que crio para embarcar em outro por um tempo. Tenho facilidade para começar e dificuldade para terminar uma obra, porque é muito raro sentir que tem algo pronto ali. Preciso às vezes me dizer que sim, está finalizado, porque, senão, vou mexer na obra incessantemente. Ter calma para produzir não é algo incentivado no mercado do qual faço parte, então foi algo recente para mim entrar no ritmo de fazer e entregar a obra sem ter esse contato prolongado. Foi muito importante, inclusive, ter passado pela residência de três meses na Domo Domo e conseguir ficar mais tempo com as minhas obras. 

Imagem em preto e branco, feita com grafite sobre papel. A composição é abstrata, mas sugere rostos humanos sobrepostos e fragmentados, delineados por traços finos e áreas de sombreamento. Na parte superior, uma faixa curva lembrando uma escada atravessa a cena. Ao centro, a palavra “ESPERA” aparece em letras maiúsculas. Linhas brancas atravessam a obra de cima a baixo, criando fissuras que dividem as figuras.
Pra quem espera nenhuma demora é pouca, lápis e carvão sobre papel, por Ana Neves

EB - Quais referências visuais, sonoras e textuais você mobiliza ao realizar suas esculturas e demais produções?


AN - Tenho mais referência de texto do que de imagem. Sempre fiquei com medo de acabar vendo demais algo e tentar replicar, então me distancio do excesso de consumo, apesar de ser bastante estimulada por conta das redes sociais. No texto, admito que consumo muita poesia, então, de Miró, Stella do Patrocínio a Manoel de Barros, tudo me interessa. Eu também levo Câmara Cascudo como grande referência de pesquisa, além de ter os artistas do meu convívio como referência de imagem e forma de trabalhar. Da minha geração: Eduardo Bezerra Jr, Nando Portela, Luiza Morgado, Bisoro e Lu Ferreira.


Três pessoas estão sentadas em cadeiras de madeira com estofado, formando um círculo de conversa dentro de um espaço artístico. No centro da imagem, uma mulher de pele negra clara e cabelos crespos pretos volumosos gesticula com a mão, aparentando estar no meio da fala. À direita, outra mulher, também de pele parda e cabelos crespos castanhos volumosos, a observa com atenção, vestindo uma blusa verde caída sobre os ombros. À esquerda, vê-se parcialmente um homem de pele clara e cabelos cacheados pretos, visto de costas. O ambiente tem paredes pintadas em laranja e branco, com grades de ferro branco que sustentam pinturas em papel. Uma das pinturas mostra uma figura humana de traços soltos, com pernas dobradas em posição baixa; outra, à esquerda, retrata uma cabeça em tons de vermelho. Ao fundo, há mesas de madeira com materiais de arte, um cavalete com pintura colorida e uma porta metálica cinza fechada.

¹ A Escolinha de Arte do Recife (EAR) surge no Movimento Escolinhas de Arte (MEA), iniciado nos anos 1940. O movimento tem por objetivo a pesquisa de novos parâmetros para a arte-educação, fundamentados na liberdade de expressão.



 
 
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