ANA NEVES: EXERCÍCIOS DE DERIVA IMAGÉTICA
- Elizabeth Bandeira
- 20 de mar.
- 5 min de leitura
Ao transitar entre desenho, pintura e literatura, Ana Neves (São Vicente Férrer - PE - 1998) investiga dinâmicas de migração, fluxo, mudança e identidade. Nesta entrevista à Propágulo, ela compartilha as principais referências visuais e poéticas que permeiam sua produção, elementos que comportam seu repertório artístico, detalhes do seu processo criativo e a relação entre suas obras e vivências pessoais.

ELIZABETH BANDEIRA - Atualmente você está situada em Recife. A saída da sua cidade natal, São Vicente Férrer, afetou de alguma maneira suas produções?
ANA NEVES - Vim para Recife no começo da minha adolescência, mas essa mudança influenciou muito na minha linguagem artística, pois muitos símbolos que uso em obras vêm desse fluxo de ter saído de uma região de Mata para cá. Hoje em dia, essa questão é muito menos sensível para mim do que era há alguns anos atrás. Eu vislumbrava conseguir manter a minha vida morando lá, pois sempre foi muito caótico para mim viver na capital. É muita informação. Sentia falta das experiências mais simples: poder ir para escola andando devagar, conhecer as pessoas e as pessoas me conhecerem, o clima da região, menos horários rígidos, menos trânsito, menos conflito, enfim. Queria voltar, mas também tem a parte que é muito grave da região da Mata, que é não existir investimento algum para que se trabalhe com o que eu trabalho.

EB - O seu repositório criativo abarca materialidades variadas. Queria saber qual foi a primeira dessas técnicas que você teve interesse em investigar mais sobre.
AN - Sempre fui uma criança que gostava de desenhar. Minha mãe percebeu isso e me colocou na Escolinha de Artes do Recife¹, no bairro das Graças. Comecei a pintar lá, mas sem pretensão profissional. Teve um dia que uma galera foi até essa escolinha para fazer um grafite na parede e eu pensei: “Poxa, é isso que eu quero: cor, movimento e expressão!”. Nunca considerei essa minha aptidão como uma profissão possível, e só fui entender isso com mais tranquilidade depois de uma certificação acadêmica e validação das pessoas que me afirmavam que, sim, o que eu fazia desde os 12 anos de idade podia ser uma carreira.
EB - A pintura é um ponto marcante no seu repertório. O que te aproxima dessa linguagem?
AN - Meu nome começou a circular mais com a poesia e a literatura, pois auto publiquei dois livrinhos intitulados Macambira e PAFALA, que, além dos textos, continham ilustrações que geraram interesse no público. Acho que o desenho é o ponto marcante do meu repertório, porque, por mais que goste de pintar, e tenha feito isso com mais frequência, essa expressão ainda é uma grande questão para mim. É um processo confuso, no qual fico encarando muito a tela até gostar de algo, tentando acessar as cores. Nesse sentido, minha seleção cromática é composta apenas das cores primárias e o branco, não gosto de cores prontas e tento conseguir tudo apenas com essa paleta.

EB - Algumas figuras costumam aparecer com frequência nas suas telas. Como se dá o estudo dos símbolos na sua pesquisa visual? E por que essa repetição?
AN - As imagens que crio existem na pretensão de reformular lembranças, memórias, alcançar o momento vivido através das várias mudanças que a gente faz, do recorte até a edição. Um símbolo que uso bastante é um círculo fracionado, pois lembro de uma janela incomum que vi quando criança. Eu me sentia enfeitiçada por aquele “relógio meio sol”. Esses elementos aparecem em minhas produções como forma de me aproximar de imagens que já existem dentro de mim, mas que não me rodeiam mais.
EB - Como é para você a elaboração dessas figuras humanas? São personagens?
AN - Eu começo pela busca do meu próprio rosto, só que não me olho, não olho para nada para desenhar. Tento trazer da memória: começo pela mancha, e, na busca pela minha face, acabo encontrando no meio do caminho a de um parente. Esses rostos também são personagens de textos que escrevo.
À esquerda: Oiça, acrílica sobre papel paraná. À direita: Evidenciar, acrílica sobre tela.
EB - Quais memórias e temáticas seguem rondando a sua produção?
AN - Sair de São Vicente e ter vindo muitas vezes para Recife pela estrada me deu muitas imagens de velocidade, de trânsito, de mudança. A região da Mata concentra a monocultura da cana-de-açúcar até hoje, mas a minha cidade exporta banana nacionalmente. Passava por bananais, canaviais e chegava em Recife. Quando as coisas não davam certo por aqui, voltávamos para São Vicente, então as temáticas de fluxo e refluxo acompanham minha produção.
EB - Entre o rascunho e a materialização do trabalho, quais as etapas do seu processo criativo?
AN - Quase não há rascunho. O processo já acontece diretamente na superfície. À medida que vou fazendo, as surpresas surgem, pois não quero criar uma caixa de impedimento ao trabalho. O processo é tão importante quanto a obra no final. Sobre minha rotina, passo a tarde até a noite pintando no ateliê e meu processo está muito próximo do texto. Enquanto desenho, também vou escrevendo, e a imagem, muitas vezes, é reflexo da minha escrita. Se eu começo uma pintura e não consigo desenvolvê-la, já começo outra — é como se precisasse descansar desse mundo que crio para embarcar em outro por um tempo. Tenho facilidade para começar e dificuldade para terminar uma obra, porque é muito raro sentir que tem algo pronto ali. Preciso às vezes me dizer que sim, está finalizado, porque, senão, vou mexer na obra incessantemente. Ter calma para produzir não é algo incentivado no mercado do qual faço parte, então foi algo recente para mim entrar no ritmo de fazer e entregar a obra sem ter esse contato prolongado. Foi muito importante, inclusive, ter passado pela residência de três meses na Domo Domo e conseguir ficar mais tempo com as minhas obras.

EB - Quais referências visuais, sonoras e textuais você mobiliza ao realizar suas esculturas e demais produções?
AN - Tenho mais referência de texto do que de imagem. Sempre fiquei com medo de acabar vendo demais algo e tentar replicar, então me distancio do excesso de consumo, apesar de ser bastante estimulada por conta das redes sociais. No texto, admito que consumo muita poesia, então, de Miró, Stella do Patrocínio a Manoel de Barros, tudo me interessa. Eu também levo Câmara Cascudo como grande referência de pesquisa, além de ter os artistas do meu convívio como referência de imagem e forma de trabalhar. Da minha geração: Eduardo Bezerra Jr, Nando Portela, Luiza Morgado, Bisoro e Lu Ferreira.

¹ A Escolinha de Arte do Recife (EAR) surge no Movimento Escolinhas de Arte (MEA), iniciado nos anos 1940. O movimento tem por objetivo a pesquisa de novos parâmetros para a arte-educação, fundamentados na liberdade de expressão.