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  • IMAGINÁRIO REESTRUTURADO NA PINTURA DE BISORO

    O artista Bisoro (RECIFE, PE, 1999) foi convidado para desenvolver “Agora nada que já lhe tenha pertencido existe”, novo múltiplo de arte disponível para o Clube de Assinantes da Propágulo. Em conversa com a redatora Elizabeth Bandeira, o artista divide um pouco sobre seu processo de criação, os aspectos subjetivos nas suas obras e as principais referências que influenciam na sua produção. Elizabeth Bandeira - Bisoro, você poderia nos contar um pouco sobre você e o seu trabalho? Bisoro - Meu nome é Bisoro. Tenho 24 anos. Sou artista visual e meu trabalho propõe o mapeamento e documentação das práticas ligadas à autoproteção e expressão de afeto por um corpo localizado nas bordas da cidade, especificamente a partir do Céu Azul, bairro da periferia de Camaragibe (PE), de onde venho e exerço minhas pesquisas. Atualmente, desenvolvo meu trabalho através da costura, na qual eu projeto armaduras que protegem esse corpo vulnerabilizado, e através da pintura, a fim de criar símbolos de força e autoafirmação, assim como performance e vídeo. EB - Como suas experiências pessoais influenciam a temática e o conteúdo das suas obras? B - Meu trabalho está diretamente conectado às minhas experiências íntimas e àquelas compartilhadas com as pessoas ao meu redor. São situações usualmente ligadas a violências infligidas por agentes externos a esse corpo em vulnerabilidade, assim como a expressões de revolta que podem se originar dessas ações opressoras. No filme todos os abraços que não te dei, por exemplo, eu ficcionalizo, ao mesmo tempo que documento, a ação forçosa de abertura das portas traseiras dos ônibus realizada por moradores do Céu Azul, no intuito de usufruírem deste transporte de forma gratuita. Essa prática é criada a partir da compreensão compartilhada pelos residentes da injustiça e descaso à acessibilidade causada por agentes públicos a esses corpos à margem. Aspectos subjetivos, como o sentimento de saudade e afeto, principalmente ligados a mortes violentas, são um outro ponto de interesse do meu trabalho. Busco transmutar a realidade que me cerca propondo um lugar ficcionalizado de fuga e proteção. Desenvolvo minha prática a partir dessas observações. EB - Como você escolhe os elementos que compõem suas pinturas para transmitir as sensações que você explora? B - Me interesso artisticamente pela criação de um lugar seguro. A partir disso, elaboro visualmente alguns símbolos de força e poder, representados neste corpo monstrificado que projeta espinhos e asas, possibilitando-lhe uma fuga de lugares sombrios. O uso das cores também vem desse meu desejo de criar um espaço seguro e ameno a vivências vulneráveis, em contrapartida aos estímulos que elas já são expostas. EB - Você foca a maior parte da sua produção na pintura, mas queria saber se existem outras linguagens que você gosta de experimentar. B - Comecei a minha produção visual na infância, a partir do desenho e, influenciado por filmes, segui para os quadrinhos. Falo isso porque as mídias e as materialidades que escolho para desenvolver meu trabalho são modificadas através do tempo. Atualmente, a pintura e a costura ocupam um lugar mais central das minhas produções, tendo esta última me possibilitado a criação da FARPA, minha marca de vestuário, mas minha prática escorre para diversos lugares, do grafite à performance. EB - Quais são as tuas referências e influências atuais? E como elas estão presentes no múltiplo? B - As minhas referências partem de muitos lugares, seja da vida e obra do artista plástico Jayme Figura, até as animações japonesas dos anos 2000 e alguns subgêneros do Trap. Entendo essas referências, a exemplo do anime, não como um consumo pessoal exclusivo, mas como uma absorção compartilhada e massificada por uma população preta e periférica que se reconhece nas narrativas presentes dessas mídias. Me influencio também pelas músicas e estéticas imaginadas por pessoas pretas, respectivamente o Trap e Opium, um subgênero do streetwear com raízes nas subculturas Avant-garde Metal e Punk. Assine e receba! O múltiplo de arte “Agora nada que já lhe tenha pertencido existe", de Bisoro, foi impresso em serigrafia de cinco cores sobre papel Canson 200g livre de ácidos com 42 x 51 cm. As artes são assinadas e numeradas pelo artista e contam com certificado de autenticidade. Com diversos planos, o Clube de Assinantes da Propágulo é o ponto de encontro para quem busca colecionar e se aprofundar sobre arte. Fazendo parte deste programa, você recebe nossas revistas, livros e múltiplos de arte por um preço especial, além de garantir uma série de benefícios, como gratuidade em cursos, acessos exclusivos ao editorial do site, notícias antecipadas dos nossos lançamentos, e muito mais!

  • SINFONIA DO PRESENTE

    Rayana Rayo (Recife - PE, 1989) vem descobrindo novas vias de autoconhecimento: em suas pinturas, a abstração ganha contornos de autorretrato, desabrochando em paisagens enigmáticas, ambíguas, incertas por meio das quais a artista passa a aprender sobre si a partir da solitude. A tecelagem “Desencontros”, anterior à produção das telas também contidas nesta mostra, acontece enquanto representação esquemática — uma linha ondulada, contínua, e outra angulada, breve —, mas também confessional na síntese de elementos envolvidos, podendo ser percebida enquanto cronologia autobiográfica da artista. Por ter sido produzido em tapeçaria, o trabalho ganha um entendimento de que houve, no decurso de sua gênese, uma fatia significativa de tempo que foi vivenciada ao longo de sua concretização. A percepção do tempo empregado por Rayana Rayo na tecelagem, obra de maior rigor aqui apresentado, também se metamorfoseia em suas pinturas. Dilatando-se de telas confeccionadas sem meta precisa, frutos de um ritmo pautado no encontro diário consigo em ateliê, a artista elabora sobre os eventos significativos de sua vida ao passo que lida com o material de seu trabalho. Dos ladrilhos hidráulicos de sua casa, único elemento retratado em suas telas que parte de uma referência visual factual, abrem-se poros de onde emerge uma paisagem ora fluida, ora sólida. Fazendo-se dentro da cotidianidade da artista, não há um rigor cromático premeditado, não há rascunho nesse tipo de trabalho: as pinturas de Rayana Rayo são produtos de decisões tomadas no presente, e desta empiria brotam, jorram, irrompem e borbulham as partículas as quais compõem seus corpos. É pelo arranjo destas que é composto um lirismo que vem dos inúmeros contrapontos de suas imagens. Formados por órgãos dotados de coerências internas e interações misteriosas, as pinturas “Autorretrato I” e “Autorretrato II” trazem interações alquímicas entre sólidos animalescos, maquínicos, microscópicos ou interplanetários. Os órgãos em sinfonia presentes no trabalho de Rayana Rayo podem ser percebidos pelo que essencialmente não são, isoladamente, através da comparação destes com os outros elementos que os ladeiam. Se um se mostra ferino, é também pelo fato de que outro, em algum lugar na composição proposta, será evidenciado pela sugestão de sua maciez. Se um ganha destaque através da lisura, encontrará em sua antípoda uma profusão de irregularidades e assimetrias. Mas onde estão evidenciados os contornos de autorretrato na obra da artista? Como caracterizar sua dimensão de aprendizado? Esse mistério não está necessariamente codificado nas figuras produzidas por sua criadora, mas na lembrança quase onírica de quando estava propondo cada uma delas em suas paisagens camaleônicas.

  • “PIXAR É HUMANO": ESCRITAS INSURGENTES NA CIDADE

    Fui criado em um bairro de grande tradição na pixação. É relatado que desde o final da década de 80 e início da década de 90 existiam pixadores em Beberibe e nos arredores da Zona Norte do Recife (PE). Cresci onde o pixo era parte do cenário das avenidas, ruas, becos e vielas. A pixação surgiu, pelas bandas de cá, junto com o fenômeno das galeras periféricas — grupos de jovens que se uniam em torno de uma sigla, na maioria das vezes, representando uma abreviação dos seus bairros. Ocupavam os bailes funks da RMR. Os pixadores eram um tipo de propagadores dessas siglas pela cidade. No bairro de Beberibe, o comando mais expressivo e antigo é a ATM (Atacante Terroristas de Muros), em atuação até hoje. Não sou da primeira geração de pixadores, longe disso, comecei bem depois que os primeiros registros de pixação apareceram em Recife. Nesse ambiente suburbano, tive meu contato inicial admirando as escritas nos muros. Depois, colocando os primeiros nomes nas paredes. Com certeza essa foi a primeira experiência com o fazer artístico, de maneira mais consciente, mesmo ainda, nessa época, não me entendendo como artista. Com o passar do tempo, os limites territoriais do bairro foram ficando restritos, outros bairros foram fazendo parte das caminhadas. O pixo me fez conhecer a cidade e suas regiões. Ocupando cada vez mais territórios, da periferia até o centro da cidade, local hostil aos jovens periféricos. A vontade de deixar o pixo em mais lugares expandiu os horizontes fazendo com que a cidade negada cotidianamente fosse ocupada. E mais, transformou caminhos que eram apenas passagem em paisagem. “PAREDE BRANCA, POVO MUDO” A pixação exercita o olhar e faz enxergar a cidade de uma outra maneira. Onde para alguns é apenas cinza e concreto, para os pixadores viram locais com possibilidade de intervenção, mudando, assim, nossa identificação com esses territórios. Rompendo nossos limites cartográficos impostos socialmente. Ressignificando a urbe, suas esquinas, encruzilhadas e avenidas. Rompendo as amarras em uma atitude intrusiva, de penetrar os espaços proibidos pela sacra lei da propriedade privada. As paredes riscadas são apenas parte de algo bem maior que existe por trás, no silêncio da ilegalidade imposta pelo Estado. Engana-se quem acha que a pixação começa e termina no ato de “vandalizar” muros. Ela existe em um amplo movimento, artérias e circuitos, que promove espaços, encontros e relações de irmandade e, também, de competitividade. Esses espaços de atuação geram identidade e representatividade. E, nesse processo, cada pixador se olha enquanto parte de algo maior. Uma identificação pelo que faz. E, levando em conta toda a alienação gerida pelo capitalismo, identificar-se como parte de algo é uma das razões do pixo, que, mesmo com toda repressão do Estado, não foi banido ou apagado do cenário urbano. Lembro que sempre um amigo falava: — “quando estou pixando é o único momento em que me identifico com o que faço”. Essa frase, por si só, revela o caráter desalienador do pixo, tanto no que diz respeito ao processo artístico, quanto ao processo de ocupação do espaço público, como meio de se reconhecer e se manter vivo na paisagem desumanizadora das metrópoles. É lamentável que quando se levanta alguma discussão sobre pixação e arte, na maioria das vezes, os discursos se desdobram em um questionamento que, por trás da problematização, esconde aspectos conservadores sobre concepção artística e de aspectos sociais. E esse questionamento sempre gira em torno de ser ou não uma expressão artística. Essa problematização em torno de uma questão não deveria mais hegemonizar as discussões sobre a pixação no Brasil, já que essa expressão atua no ambiente urbano desde a década de 80, tempo histórico sufi ciente para se ter aprofundado estudos e análises sobre a temática. Também para escutar e acompanhar o desenvolvimento dessa expressão da arte urbana no cenário nacional. É possível, levando em conta as especificidades de cada local, traçar escolas, estilos e traços característicos de um estado ou tempo histórico. Cada artista, dentro do seu período de atuação, desenvolve sua técnica, criando suas letras, que mostram seu caráter criativo e suas influências e transformações ao longo do tempo. O que, por muitos, é apontado como sujeira e rabiscos desordenados é, na verdade, um grande lastro de saberes e estilos desenvolvidos a partir de influências estéticas, desenvolvimento técnico, estudo individual e coletivo para chegar a um formato artístico para ser riscado nos muros. Só que, diferente de outras expressões e linguagens artísticas, o pixo surge como uma ação de transgressão e ruptura ao processo histórico de silenciamento, de negação dos espaços públicos e dos espaços privados e de afirmação artística e territorial de populações submetidas à marginalidade política, social e econômica. “O VERDADEIRO BANDIDO NÃO FOI PRA CADEIA. TÁ COMPRANDO AMAZÔNIA E DIZIMANDO ALDEIA” Existe uma escassez de materiais e registros históricos produzidos pelos próprios pixadores. Essa escassez se aprofunda quando se procuram materiais das décadas passadas, onde o acesso a material audiovisual era algo difícil, dificuldades essas impostas pelos limites econômicos e pela falta de políticas públicas de democratização da produção visual e audiovisual. O material que se tem ou é fruto de recortes de matérias de jornais da grande imprensa, com um linha editorial quase única de apoio à criminalização e à perseguição ao pixo, ou são estudos e documentários realizados por pesquisadores, que muitas vezes reproduzem, em algum nível, o discurso do sistema opressor. Existiram várias iniciativas de organização de zines ou vídeos produzidos pelo próprio segmento artístico, e esses materiais são de grande riqueza documental, mas, pelo grau de estrutura, se encontram dispersos e pulverizados. Muito do que resistiu, enquanto memória, foi fruto da cultura oral, onde uma geração passa para outras suas experiências, técnicas e histórias. Todo esse material discursivo circulando nos encontros, nos rolês… Houve uma melhoria no processo de documentação depois da massificação da internet e do fenômeno das redes sociais. Sabemos que parte da luta pela sobrevivência de uma cultura é sua luta pelo direito à memória. Apagar os muros com tinta, perseguir criminalmente e ignorar a existência da pixação é tudo parte do mesmo pacote de dominação e preservação das narrativas elitistas e higienizadoras para silenciar processos de transgressão e de enfrentamento com a historiografia “oficial”. Diante disso, não é de se admirar que, durante toda existência da pixação, existiram ações judiciais para sua criminalização. Até 2008, o pixo era enquadrado no Artigo 63 do código penal como crime de depredação ao patrimônio. No mesmo ano, é aprovada no Congresso Nacional a Lei 9605 (lei dos crimes ambientais), que traz no Artigo 65 a tipificação do pixo como crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Além disso, ainda tem as leis e projetos de lei municipais e estaduais que fazem coro com a Lei 9605 e que, em alguns casos, chegam a ser mais duras. Todo esse aparato judicial esconde, por trás de um debate contra o pixo e a higienização das cidades, uma narrativa de perseguição às práticas culturais provenientes das periferias urbanas e da proteção à propriedade privada, buscando o esmagamento e o desaparecimento dos seus artistas, sendo a motivação delimitada por questão de classe e raça. São os pixadores, jovens das periferias urbanas, que sofrem perseguição judicial e, no silêncio da madrugada, violência policial, tortura psicológica e até mesmo, em alguns casos, assassinatos. Todos os pixadores carregam o peso de histórias e relatos dessas violências por parte da força policial e do poder judiciário. Sabemos que na cidade, no geral, dois projetos estão sempre em disputa. De um lado, privatização dos espaços públicos, gentrificação, elitização e criminalização da pobreza, da arte urbana e dos movimentos sociais. Processo este encabeçado pelo capital especulativo e grandes construtoras e apoiado por muitos governos e suas forças de repressão armada, que se beneficiam das gordas verbas e financiamentos de campanhas eleitorais. De outro lado, um projeto de cidade popular, com democratização do acesso e ocupação de seus espaços; garantia do direito pleno à moradia, trabalho e lazer; fomento e incentivo ao diálogo artístico urbano e preservação do patrimônio arquitetônico e histórico. Dentro desse espaço de fissuras sociais, a garantia do direito de expressão artística é uma luta importante para construção do projeto de uma cidade popular e inclusiva. “A PIXAÇÃO É A ARTE QUE DISCRIMINARAM” O processo de apagamento e invisibilização do pixo se dá, também, em âmbitos relacionados à arte. Um aspecto disso são as narrativas nos manuais e livros didáticos do ensino da arte nas escolas e universidades. Quando muito, esses materiais falam é de grafite e de outras expressões da arte urbana. E reforçam uma falsa dicotomia entre grafite/arte urbana vs pixação, se apropriando de um discurso que é muito propagado pelo estado e, infelizmente, em alguns espaços artísticos, coloca as outras artes urbanas como uma alternativa higienizada e positiva, apontando a pixação como algo sujo e criminoso. Quando, na verdade, a origem do grafite remete aos mesmos princípios do pixo, onde, na rua, os artistas intervêm no cenário urbano de forma não autorizada pelo estado e pelos proprietários dos imóveis, deixando suas escritas como forma de manifesto e afirmação artística. Outra postura bastante negativa é dos espaços institucionalizados de arte, incluindo as galerias, as mostras, as revistas especializadas, que, ao  não incorporar a pixação como uma expressão artística contemporânea, agem reproduzindo uma das lógicas do discurso e práticas conservadoras, que apaga qualquer possibilidade de discussão sobre a temática. Alguns espaços e galerias, principalmente as relacionadas a arte urbana, agem com uma outra postura. Como exemplo, temos a exposição em homenagem ao pixador DI (em memória), sendo esse um dos principais pixadores de São Paulo da década de 90 e um dos precursores da modalidade de pixos nos prédios. A exposição ocorreu em 2016, na A7MA Galeria, em São Paulo. Essas iniciativas são muito importantes, diante do peso e da presença que a pixação tem no cenário contemporâneo nacional e do necessário respeito que ela merece. Contudo, longe de achar que o pixo precisa da legitimação do circuito de arte institucional e mercadológico para existir, pelo contrário. Talvez sua caminhada na contramão de todas essas institucionalidades seja parte da gênese do seu espírito libertário e do seu poder transgressor, justamente por conta de sua existência estar intrinsecamente ligada ao caráter “ilegal” da intervenção artística. Porém, uma coisa não precisa negar a outra, elas podem coexistir de maneira positiva e, ao incorporar nas suas programações, esses espaços, veículos e instituições ajudariam a desconstruir a propaganda ideológica criminalizante que recai sobre a pixação. No pixo existe uma pluralidade de vozes e de visões sobre as escritas urbanas e elas todas precisam ser escutadas e visibilizadas. Esse texto é um relato pessoal de algumas experiências, vivências e opiniões que tenho sobre a pixação dentro do contexto social e artístico. Tenho noção da importância do pixo na minha formação artística e humana, quanto ela foi decisiva na compreensão da arte em que eu acredito e que me impulsionou a transitar por outras expressões, como a fotografia, a colagem, o lambe. Mas sempre entendendo a rua como um espaço de ocupação, resistência e intervenção. Pelo direito ao espaço público e à democratização da arte. “Pixar é humano”, já falava DI, e é parte da necessidade de se expressar em meio ao ruidoso caos urbano e sensibilizar nossas ações, desobediências e transgressões na urbe. CITAÇÕES: * A frase “Pixar é Humano” é de autoria do artista DI (SP), citado no texto; ** “O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia, e dizimando aldeia” é um trecho da música Pixadores II, de autoria de Nocivo Shomon; *** “Parede branca, povo mudo” é uma frase de autoria desconhecida pixada diversas vezes nas paredes de diversos lugares do Brasil e do mundo; **** “Pixação é a arte que discriminaram” é trecho da música “Pixar é humano”, de Grilo 13.

  • EM DEFESA DA ARTE CEARENSE

    "A arte é criação de mundos. Registros do cotidiano. Paisagens. Retratos. Acontecimentos históricos. Representações da realidade social, afetiva e ancestral. Expressões da subjetividade. Realidades abstratas, materiais, imateriais, concretas, conceituais, sensíveis e impossíveis. Os mundos da arte nos ensinam que existem outras realidades para além daquela que estávamos acostumades a consumir através de uma ótica euroreferenciada e higienizada, e nos convidam a vivenciar outras experiências possíveis construídas por pessoas distintas em toda a pluralidade e diversidade existente nas dimensões territoriais deste país. A exposição “Se arar”, em cartaz na Pinacoteca do Ceará, busca apresentar a arte cearense em sua multiplicidade ética, étnica, estética e política. Enquanto uma exposição coletiva, ela nos mostra que mundos tão diferentes podem conviver juntos e, assim, nos inspira a construir uma democracia baseada na diferença e nas políticas de vizinhança sensível. Construindo um ecossistema onde corpos e cosmovisões singulares se afetam e confluem para um universo plural, no qual a hierarquização e a monocultura do saber já não possuem espaço. Por isso, participam artistas de diferentes gerações, territórios e corpos que juntes constituem uma comunidade de obras e existências que percorrem todos os afluentes dos territórios cearenses. É importante destacar que os recentes ataques às obras da exposição “Se arar” estão sendo destinados a obras muito específicas, aquelas produzidas por artistas negres, mulheres e LGBT+, grupos sociais historicamente minorizados, saqueados e esvaziados de sua complexidade de elaboração artística, cultural, filosófica, linguística e espiritual, numa sociedade erguida sob o padrão de vida hegemônico que quer eliminar tudo aquilo que não for reflexo do seu espelho esbranquiçado. Existem outros nomes para esses ataques: retrocesso, preconceito e racismo estético. A curadoria da exposição “Se arar” reivindica o direito à imaginação e defende que toda obra em sua construção poético/conceitual, todas as identidades e a comunidade da arte cearense, bem como o público visitante, possam conviver na diferença, sem exclusão e sem esvaziamento dos debates políticos suscitados por todas as pessoas que trabalham com arte, curadoria, mediação, pesquisa, educação e demais presenças fundamentais que trabalham diariamente para que o acesso e o entendimento sobre arte, poéticas, processos e procedimentos artísticos sejam cada vez mais acessíveis e inclusivos. Essa foi e continua sendo a força motriz para a criação dessa exposição, que é sobretudo um grande ajuntamento da potência e preciosidade da arte brasileira, e não apenas cearense. Nos solidarizamos a todes artistas que compõem a exposição e que tiveram as suas obras atacadas, descontextualizadas e os seus direitos morais, intelectuais e imagéticos violados. A arte também pode causar estranhamento em quem a experimenta, e esse sentimento pode ser o germe de um novo mundo nascendo. Se arar, o que dá?" 9 de fevereiro de 2024 Um dia quente, Ceará Adriana Botelho, Cecília Bedê, Herbert Rolim, Lucas Dilacerda e Maria Macêdo Curadoria da exposição “Se arar”

  • CLARA MOREIRA - PRELÚDIOS DA IMAGEM #03

    Clara Moreira (Recife, PE, 1984), artista que utiliza o desenho como escrita poética e artesania do corpo, conversa com Guilherme Moraes, curador da Propágulo, sobre suas últimas trajetórias e produções artísticas. De que maneira o desenho está inscrito em seu corpo? Quais gramáticas possíveis de desdobram de uma poética focada nesse gesto pictórico? O processo de Clara Moreira acontece enquanto contínuo exercício de aproximação entre corpo e desenho, e do arquivamento do gesto performático através desta linguagem. O resultado é um ponto de encontro peculiar entre o onírico e a própria fisicalidade dos materiais que com ela interagem. Prelúdios da Imagem é uma série de vídeos realizada pela Propágulo com o objetivo de expandir debates e conversas com diferentes agentes da cadeia artística. A primeira temporada conta com 3 episódios, nos quais participam Mitsy Queiroz, aoruaura e Clara Moreira. Este projeto foi incentivado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura - FUNCULTURA, da FUNDARPE - Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Pernambuco.

  • PISTAS DE EPIFANIAS

    Por meio de um sincretismo que percorre desde a sua expressão como grafiteiro, seguindo até a presença da sua ancestralidade, que também se reverte em pintura, a linguagem artística de Bozó Bacamarte apresenta narrativas populares do Nordeste, através de representações gráficas inspiradas nas técnicas de xilogravura. A produção visual do pernambucano é discutida em "Pistas de Epifanias", texto publicado na exposição Seis Paisagens na Galeria Marco Zero, com curadoria de Guilherme Moraes, e agora disponível no editorial da Propágulo. A chave do caminho e os sete pontos firmados, 2023 Acrílica sobre tela 120 x 100 cm I “Oh lelê dona Chica…” entoava em alto e bom som o palhaço de perna-de-pau. “Mexe a canjica!”, respondia o grupo de crianças que o seguiam, saltitantes, pela rua. Uma delas era Bozó Bacamarte (Recife - PE, 1988). “Hoje tem espetáculo?”, perguntava o homem cambaleante, anunciando a chegada do circo que se armava no terreno próximo ao cemitério. “Tem, sim, senhor!” Gritavam todos, eufóricos, naquele ano de 1994. Carnaval, Acrílica sobre Eucatex, 2023 II Certa vez, Bozó acompanhou seu pai a uma visita a Tia Cecília, parenta da família. Recorda-se do fascínio que sentiu ao observar, em sua mesa, representações de entidades distintas das que costumava encontrar em um universo católico, ao qual era, até então, mais familiarizado. Enquanto fitava figuras mais irreverentes e coloridas do que as que já conhecia, escutava, ao longe, o som de alguma cantiga na voz de Cecília ritmada por um maracá. Essas imagens e sons ficariam gravados em sua memória, assim como o cheiro de fumo queimado há pouco no cachimbo de sua tia “espírita”. Galo de Demanda, 2022, Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm III Ainda é possível ver alguns dos primeiros grafites e pixos monocromáticos produzidos por Bozó nos muros que recortam Recife e Olinda. Características por aludirem ao entalhe farpado da madeira, próprios da xilogravura, tais propostas já delineavam uma série de interesses que viriam a ser burilados ao longo da produção do artista. Anos depois, a tela se somaria a uma prática de produção imagética que sempre fora, afirma Bacamarte, pintura. Nesse novo meio, ao invés de seus personagens medirem duas, cinco, dez vezes seu tamanho, como nos murais que ainda produz, passariam a figurar a partir do artifício da redução — por meio do qual o artista se tornou capaz de interligar conjuntos cada vez maiores de cenas em simultaneidade. Detalhe de Galo de Demanda, 2022, Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm IV Foi em 2005, em uma aula de campo no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), que Bozó se deparou com as gravuras do pernambucano Gilvan Samico. Estas, passariam a ser referência direta para o seu trabalho. À sua maneira, Bacamarte atualiza a plasticidade e alguns dos preceitos do Movimento Armorial em suas telas, mas seria redutor localizar o movimento como única lente para a leitura de sua obra, sendo este o pontapé de uma grande epifania que viria a se tornar a força motriz de sua identidade artística. Os três Guardiões e o Cavalo Mestre, Mista sobre tela, 110x90 V Há alguns anos, na estrada rumo a Taquaritinga do Norte, outra centelha: um céu sem nuvens, todo em um azul inexplicável, simultaneamente pálido e vibrante, abria-se aos olhos de Bozó prenunciando o entardecer. Esse elemento passaria a ser uma das primeiras cores a coincidir com o preto e branco de suas imagens, autorizando um sem-fim de outras, cada qual relacionada a uma lembrança ou sensação que habita a paisagem afetiva de sua memória. VI As pinturas de Bozó Bacamarte exemplificam um universo encantado, humorado e delirante proposto por ele. Suas paisagens agrestes, chaves para outro mundo, são povoadas por figuras equilibristas, contorcionistas, saltitantes. Híbridos de animais, brinquedos, gente e entidades, todos os seres parecem suspensos no ápice de seus gestos dentro das paisagens insólitas propostas pelo artista. A casa da mestra e os bodinhos Pirilim, Mista sobre tela, 2023 VII Na sua etimologia, híbrido vem do grego hybris, significando delírio, sonho, embriaguez, alegria, excesso, equívoco. Bozó Bacamarte propõe uma iconografia prenhe de um imaginário sincrético — demarcado por signos da Jurema Sagrada —, mas também emendado com a aleatoriedade, o trocadilho e as superstições populares. É uma alegria delirante dentro de uma rigidez que ainda acena para xilogravura, que tanto lhe é afeita. É um excesso sonhado com rigor. É o oposto de um equívoco: as imagens inventadas por Bozó são o ponto de encontro de seus sentidos outrora dilatados em epifania. *Texto publicado na exposição Seis Paisagens, com curadoria de Guilherme Moraes, em cartaz em julho de 2023 na Galeria Marco Zero, no Recife.

  • O TEMPO DO JARDIM É O TEMPO DO OUTRO

    Vencedor da Ciranda Fotográfica no 9º Pequeno Encontro da Fotografia, o projeto (EM)Transição – Pesquisa cultural em fotografia e agroecologia" estabelece como mote os valores coletivos e a defesa da autossustentabilidade social . '(EM)TRANSIÇÃO' - Agroecologistas Antônio e Célia junto ao biodigestor em Bonito (PE), antotipia de casca de cebolas roxa, maio de 2023 Descortinar o processo de construção de um projeto fotográfico é poder vislumbrar, em suas nuances políticas e estéticas, os encontros transformadores e pontos de inflexão que traçaram o seu desenvolvimento. Contrário ao usual caminho seguido por trabalhos vencedores em competições, nos quais a autoria é atribuída a uma mente criadora, ao ganhar a premiação da Ciranda Fotográfica no 9º Pequeno Encontro da Fotografia, o projeto (EM)Transição – Pesquisa cultural em fotografia e agroecologia reforçou a fotografia enquanto uma experimentação anti hierárquica e sensível. Intitulado Ação coletiva e agroecologia: os caminhos da mobilização social para a construção de uma política pública municipal em Bonito/PE, trabalho da tese de doutorado de Paulo José de Santana, não só analisou o processo de construção da política pública da cidade pernambucana, a partir das estratégias de transição agroecológica e da ação coletiva, como também “acendeu a fagulha inicial do projeto fotográfico”, explica o pesquisador e participante do (EM)Transição. Por meio de um diálogo robusto de reflexões, atravessadas ocasionalmente por funções fáticas da linguagem, como só uma sessão virtual no Meet pode proporcionar, a entrevista da Propágulo com alguns dos colaboradores do projeto vencedor da Ciranda Fotográfica¹ — a agricultora agroecológica Fábia Lima, a produtora Lara Bione, os fotógrafos Danilo Galvão e Roberta Guimarães, e o pesquisador agroecológico Paulo José de Santana —  expõe a potência existente na feitura de um projeto composto por muitas mãos. No Agreste pernambucano, uma sub-região de modificação entre a Zona da Mata e o Sertão do Nordeste, está situado o município de Bonito. Foi neste território que já compreende em seu firmamento as mutabilidades geográficas onde o projeto (EM)Transição encontrou solo fértil para o seu desenvolvimento. ¹ Realizada pela primeira vez nesta 9ª edição do Pequeno Encontro da Fotografia, a Ciranda Fotográfica contempla obras em formatos diversos, tais como ensaios e fotolivros. A ideia é que pessoas e coletivos apresentem suas obras, selecionadas por meio de convocatória, para a curadoria do festival em sessões de pitching que podem durar até 15 minutos. (EM)TRANSIÇÃO - Antotipia de extrato de cascas de cebola dourada O projeto começou a ser construído a partir do primeiro encontro do grupo, que aconteceu em 8 de abril de 2021. À época, os colaboradores Danilo Galvão, Lara Bione e Fábia Lima faziam parte da formação em processos de mobilização e acompanhamento na agricultura familiar e agroecológica, ministrada por Paulo Santana. Juntos, em uma roda de conversa, entenderam que o melhor caminho para a apresentação de um projeto que discutisse a experiência de transição agroecológica, a nível de uma cidade, seria pela fotografia. Processos fotográficos alternativos Fotos da esquerda para direita: Antotipia com Flor de Bougainville, antotipia com extrato de caiuia e fitotipia com a agroecologista Joelma Elegendo a mudança como mote do projeto, sendo o mesmo entrecortado constantemente por estados de transição, o fotógrafo Danilo Galvão sugeriu que a antotipia e a fitotipia, processos fotográficos que envolvem a utilização de pigmentos vegetais como material fotossensível, guiassem este trabalho artístico. Assim, encontrou no trabalho de Roberta Guimarães pontos em comum com o desejo que lhe movia. “Eu nunca tinha trabalhado com a técnica, mas acredito que ela, além de aproximar a botânica da fotografia, também permite um processo de contemplação da imagem enquanto resgate de identidade territorial. Me lembrei então de uma apresentação de Roberta sobre o projeto Árvore da Palavra, na 7ª edição do Pequeno Encontro da Fotografia, e a convidei para participar da iniciativa conosco”, relembra. Efêmera e imprevisível, a antotipia é uma técnica à qual a fotógrafa Roberta Guimarães já estava familiarizada, mas que, ao longo do desenvolvimento do projeto, foi se aprofundando ainda mais nas suas nuances imprevisíveis. “Enquanto estávamos no sítio de Fábia, experimentando com a técnica, íamos notando as diferenças no processo de impressão — o urucum quando está mais fresco, por exemplo, funciona de uma forma. Quando está velho, já não fica tão bom. A gente descobriu a caiuia, uma frutinha dada aos peixes da região, que traz uma cor bem interessante, mesmo não sendo um estrato tão conhecido. São processos de transição, não se sabe o que vai acontecer com a obra”. “Estamos muito acostumados com os processos instantâneos e registros imediatos que as redes sociais nos possibilitam, tudo já está pronto. Em contraste, existe ali na feitura da antotipia e fitotipia um processo de contemplação, de calmaria.” (EM)Transição Imersão agroecológica Parte da Associação Vida Agroecológica, Fábia Lima conta que foi em uma das reuniões mensais dos agricultores, situadas no Mercado da Vida, um estabelecimento organizado por processos autogestionários de mais de vinte famílias agricultoras do município, que a equipe de (EM)Transição veio apresentar o projeto aos trabalhadores e contemplá-los com a participação na iniciativa. “Por votação, eu fui escolhida para ser a articuladora local”, conta a agricultora. A casa de Fábia Lima foi um dos onze sítios de agricultores da Associação visitados para os momentos de imersão no projeto. “Os participantes do projeto estavam naquele espaço para fazer as pesquisas das plantas, medicinais e nativas, que poderiam ser usadas no processo de antotipia e fitotipia. Além dessas imersões, entre março e junho deste ano, sempre às sextas, que é o dia usual da feira, tinham oficinas lá no Mercado da Vida onde os agricultores podiam participar, mas dessa vez para aprender a técnica”. O coletivo e a apropriação da linguagem A experiência fez confluir a vivência coletiva dos agricultores com a apropriação da linguagem fotográfica ecológica. Marcado por um exercício de escuta e sensibilidade, o processo também reforçou a contribuição da imagem para a construção da identidade local, como bem relembra Danilo ao contar a história de Seu Luís, um dos agricultores da Associação. “Montamos um pequeno estúdio no Mercado para poder fotografar as atividades e os participantes. Lembro que ele, com os seus 70 anos de idade, dizia que ‘era amostrado, porque ninguém é invisível e todo mundo já nasceu pra ser visto’. Esse entendimento, mesmo que simples, me marcou muito e nos acompanhou ao longo do projeto. Estamos ajudando a nós mesmos a construir uma identidade, uma imagem sobre quem somos a partir desses registros”. (EM)Transição - antotipia com extrato de urucum Para Paulo, a residência conseguiu, ao se apropriar das técnicas fotográficas alternativas, encontrar formatos coerentes com a agroecologia, não só para dar visibilidade a essa temática, mas para permitir uma troca acessível com os participantes. “A beleza do projeto está na facilidade da réplica, já que não é um processo que requer muito em termos financeiros. Isso já contribui para democratizar a experiência e não distanciar as pessoas do processo”. (EM)Transição – Pesquisa cultural em fotografia e agroecologia não só se debruça sobre a paisagem, compreendendo de que forma esse território se modifica a partir da ativação do sujeito, como também convoca esse sujeito, seja um agricultor no campo, que implementa diariamente as ecotecnologias sociais, ou fotógrafos vencedores em premiações, a pensar a imagem para além de um meio de registro, comunicação e criação, mas como espaço de salvaguarda da memória ambiental.

  • AORUAURA - PRELÚDIOS DA IMAGEM #02

    aoruaura (Recife, PE, 1997), artista multimídia e performer, conversa com Guilherme Moraes, curador da Propágulo, sobre suas últimas trajetórias e produções artísticas. Como as relações de seu corpo com alteridades foram se metamorfoseando ao longo do tempo? Que comunicações são possíveis através do toque, da transposição, da contaminação e da dissolução? Quais desejos permanecem latentes em sua poética? A pesquisa de aoruaura se configura enquanto constante busca por novas maneiras de outrar-se e, assim, fazendo do contato, busca infinita e de desfecho sempre impossível, forma de aprendizado. Prelúdios da Imagem é uma série de vídeos realizada pela Propágulo com o objetivo de expandir debates e conversas com diferentes agentes da cadeia artística. A primeira temporada conta com 3 episódios, nos quais participam Mitsy Queiroz, aoruaura e Clara Moreira.

  • MITSY QUEIROZ - PRELÚDIOS DA IMAGEM #01

    Artista visual, fotógrafo, pesquisador e arte/educador, Mitsy Queiroz (Recife - PE, 1988) conversa com Guilherme Moraes, curador da Propágulo, sobre sua poética e seus processos de criação a partir da linguagem fotográfica. Quais são as aproximações possíveis entre fotografia e corpo? O que seria desviar dentro do que está estabelecido dentro das normas hegemônicas desses dois universos? Como jogar com o controle e o inesperado dentro da experimentação fotográfica? E se a imagem produzida não corresponder às expectativas canônicas do que deve vir a ser uma boa fotografia? Mitsy Queiroz tensiona a falha enquanto joga com os recursos analógicos e digitais da fotografia que produz. Prelúdios da Imagem é uma série de vídeos realizada pela Propágulo com o objetivo de expandir debates e conversas com diferentes agentes da cadeia artística. A primeira temporada conta com 3 episódios, nos quais participam Mitsy Queiroz, Aoruaura e Clara Moreira.

  • PROPÁGULO INDICA - CURADORIA

    Nesta primeira publicação do quadro 'Propágulo Indica', uma iniciativa exclusiva para o Clube de Assinantes que será lançada mensalmente em nosso editorial, propomos algumas reflexões e indicações acerca dessa temática com grande potencial de se estender excessivamente — os processos curatoriais. Serão mapeados alguns trabalhos acadêmicos, publicações e discussões sobre curadoria, a partir das nossas próprias recomendações de livros, entrevistas, podcasts e outros formatos midiáticos para que você, participante do nosso Clube de Assinatura, agora possa se inteirar com essa troca de informações. Para se aprofundar ou reaver estudos de curadoria, vem conferir as recomendações da Propágulo para esse mês de setembro! REPORTAGEM → "Como utilizar com sabedoria as dinâmicas de impulsionamento e amplo alcance das grandes instituições artísticas, sem recair em uma linguagem dominante e institucionalizada que se quer confrontar? Como entender os vínculos corporativos das galerias e do mercado de arte com os principais programas museológicos?" Essas são algumas das inquietações abordadas pela reportagem CURADORIAS REIMAGINADAS, de Mateus Nunes. No texto, é discutida a obsolescência de um modelo hermético inserido às práticas curatoriais e museológicas, assim como a necessidade de revisões internas e mudanças pragmáticas no sistema. Vale a leitura! https://select.art.br/curadorias-reimaginadas/ ENTREVISTA → O aclamado curador e entrevistador Hans Ulrich Obrist está com a câmera voltada para ele nesta edição do In Your Face: Interview, uma coleção de entrevistas de confronto com assuntos dos mundos da arte. A conversa pode ser conferida na íntegra no vídeo abaixo: REVISTA → ON-CURATING é uma revista internacional independente, tanto virtual quanto impressa, com foco em questões sobre teoria e prática curatorial. As publicações no site marcam um momento de aproximação entre acadêmicos, artistas e curadores para uma discussão em sua essência sobre curadoria e os temas que podem florescer e se destrinchar a partir dessas indagações. As edições abrangem linhas editoriais sobre proposições decoloniais na curadoria , curadoria queer, curadoria dentro do pensamento feminista , entre outras que você pode acessar na íntegra pelo link abaixo. https://on-curating.org/issues.html LIVROS → Lançado pela Editora Circuito, em 2021, a partir do trabalho de compilação de Yuri Firmeza e Pablo Lobato, o livro "O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam fazer curadoria?" reúne ponderações de figuras relevantes da curadoria de arte brasileiras. Entre os nomes escolhidos para também integrar a publicação está o de Moacir dos Anjos, curador da 29ª Bienal de São Paulo e conselheiro editorial das revistas Nº6 e 7 da Propágulo. → Para aprofundar um pouco mais sobre origens contextuais, problemáticas e vivências dentro da curadoria e mediação cultural, a Propágulo enquanto editora também lançou a sua própria publicação sobre a temática. Acesse aqui e saiba mais sobre o livro "Entre curadoria e mediação cultural". → Ainda sobre publicações, você também pode acompanhar a recém-lançada OUTROS FINS: ROTAS E TECNOLOGIAS DE FUGA A publicação de arte está disponível para leitura online e volta-se ao tema “Rotas e Tecnologias de Fuga” em sua segunda edição. Organizada por LindaCelva, Outros Fins reúne trabalhos de 18 artistas, entre Jota Mombaça, Maria Clara Araújo, Anti Ribeiro, Agrippina R. Manhattan, Manauara Clandestina e Rita Vênus. PODCASTS → Puxando o debate sobre curadoria dentro dos serviços de streaming, o podcast 1 curadorx, 1 hora realiza entrevistas com esses profissionais das artes visuais. Entre grandes nomes da área convidados para conversar nesta plataforma como Clarissa Diniz e Cristiana Tejo, a iniciativa proporciona uma troca interessante àqueles que desejam se aprofundar sobre processos curatoriais. Recomendamos o episódio do podcast com a já mencionada acima, Paulete LindaCelva, curadora independente e artista que também integrou a redação da revista Propágulo Nº7. → A Propágulo também conversa com Ariana Nuala, curadora, educadora e articuladora das artes visuais, no podcast AFTA. A curadora é quem dá início a segunda temporada do projeto em streaming e através de uma roda de conversa, dialogamos sobre as cadeias produtivas que atravessam as artes visuais.

  • PARIDADE DELINEADA — ARTISTAS INDEPENDENTES EM ESPAÇOS COLETIVOS

    O que se revela sobre um ateliê coletivo em duas horas e oito minutos de conversa? E como é que se dá a criação entre pares em meio a um sistema de produção cada vez mais automatizado e individualista? Em conversa registrada na sala 107, no Edifício Criadouro, foi desenvolvida a entrevista com os artistas Eduardo Nóbrega, Xinga e Chacha Barja para compor a segunda parte da série de reportagens sobre o Escadaria - Atelier Coletivo. Neste diálogo com a Propágulo, são expressadas suas indagações enquanto artistas independentes — seja que tipo de papel um ateliê coletivo pode desempenhar na vida de seus membros, seja de qual forma o mesmo contribui para a potencialização e legitimação artística do grupo, estimulando, simultaneamente, as relações de confiança e reciprocidade no microcosmo daqueles que o integram. 5 de junho, às 16h28 Elizabeth Bandeira - Como surgiu o ateliê coletivo? Explica um pouco também sobre o processo de organização de um espaço de criação como o Escadaria — houve dificuldades? Foi harmonioso? Eduardo Nóbrega - Rayana Rayo¹ deu início ao Escadaria em outubro de 2021 e trouxe com ela mais três pessoas, sendo uma delas Amorí², que tá aqui até hoje. No começo, fomos com tudo e pegamos treze, catorze pessoas para trabalhar no espaço e vimos que tava um caos, de certa forma. A gente não tinha muita experiência com coletivo e resolvemos só acolher um monte de artista que tava em uma mesma situação, sempre procurando um lugar pra trabalhar. Hoje em dia está mais orgânico, as pessoas têm preferências para os seus horários. Eu, por exemplo, gosto desse que estamos, das 14h até às 17h, mas já teve diversas danças das cadeiras por aqui. Eduardo Nóbrega Elizabeth Bandeira - O que te trouxe para o Escadaria, Xinga? Xinga - Eu conseguia trabalhar sozinha, mas eram dias mais longos. O processo coletivo é bom, me faz querer ter uma rotina. Vindo pra cá, tenho meus colegas que têm o mesmo entendimento do que é ser artista e de como isso pode ser muitas vezes frustrante. Essa relação é bem saudável e nos tornamos um coletivo forte não só de trabalho, mas de viver muita coisa juntos nesses dois anos. Após concluir um processo de pintura, surge Chacha Barja ³ na mesa onde conversávamos para compartilhar brevemente uma ideia. Chacha Barja - Tava ouvindo vocês falando sobre o quão essa troca é importante, na instiga que aqui também é um lugar de construção, de trabalho e como nossos processos se intercalam. Eu não trabalhava tanto com pintura, ficava em casa e totalmente inseguro com essa técnica. Aí venho aqui e começo a trocar ideias com quem está no ateliê, cria um respaldo de pessoas ao seu redor que lhe dá segurança. Xinga - Agora que Barja chegou, vou só reforçar que quando a gente fala do Escadaria ser um ateliê de artistas do Recife, a gente fala mais do que tá acontecendo no Recife. Até porque Barja é de Belém e morou no Rio por muito tempo, Marlan é de Goiânia e morou por dois anos em São Miguel dos Milagres. É mais sobre quem tá ocupando essa cidade e tem o desejo de estar num coletivo. A gente queria poder dividir a experiência com outros artistas. Por indicação de Amorí, eu entrei no ateliê. Mas acredito que aqui cada um tem o seu processo e, de toda forma, os trabalhos conversam entre si. Tipo, Barja pinta 400 quadros de uma vez, Marlan faz dois bordados ao mesmo tempo, aí tá trabalhando com cabelo e depois com concreto. Eduardo sempre pintando, mas foca só em um projeto… Elizabeth Bandeira - Você tem essa mesma inquietude de trabalhar com vários formatos? Xinga - Eu tô fazendo uma série de dez quadros para serem expostos na ART-PE. O projeto se chama “Processo de segmentação”. Ao invés de dez projetos diferentes, eram dez telas, mas um só projeto. Xinga Eu comecei a entender melhor meu processo depois que passei esse meu ano no ateliê, por exemplo. Eu não faço rascunhos, pinto direto na tela e aprendi a fazer tudo sozinha, inclusive a pintura a óleo. Comecei a pintar como uma demanda econômica de entrar no mercado. Meu processo é outro, eu fazia fanzine com uma pegada punk. Elizabeth Bandeira - É algo bem importante vocês estarem presentes na ART-PE, né? Estão indo como um coletivo mesmo e não representados por uma galeria, certo? Eduardo Nóbrega - Poucos artistas são representados por galerias aqui, mas convertemos essa energia em sermos um espaço independente que consegue coexistir com esse mercado, que é tão valioso quanto. Estamos indo participar da ART-PE igual aos “grandões”, sabe? Xinga - É um movimento de artista para fortalecer artista, de chegar em algum lugar que a gente queria chegar, mas junto. Dá ressentimento ficar sem galeria, sentir que não tem um espaço em Recife que tenha interesse no seu trabalho, ou que não queira lhe representar, porque acha que seu trabalho não vai vender. Nosso dia a dia aqui no coletivo acaba compensando essa frustração, porque é muito massa conviver com outros artistas que têm as mesmas piras e dividem os mesmos medos. Eu acho que tem que falar, inclusive, sobre o que tá acontecendo fora das galerias, o que a galera tá se movimentando pra fazer fora disso, porque ser artista é assistemático. Não é uma forma fácil de viver e ninguém tá fazendo isso porque é fácil, como costumam falar. O Escadaria é uma resistência. Elizabeth Bandeira - O Escadaria é um ateliê coletivo daqui do Recife, mas muitos dos seus artistas atualmente migraram para fora da cidade e ocupam também capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente por causa das propostas profissionais oferecidas. Como vocês enxergam essas oportunidades mais afluentes que circulam no Sudeste? Xinga - A gente fala muito do Sudeste, eu sei, mas é que existem artistas ganhando mais dinheiro lá do que aqui. Penso que o mercado recifense tá meio contra a gente, porque a galera ainda tá mais interessada em valorizar e comprar de artista morto, ou dos mesmos nomes grandes batidos da cidade, que é o que dá status. A burguesia daqui ainda é pouco antenada no circuito contemporâneo. Eduardo - Habla! Xinga - Não tenho vontade de morar em São Paulo. Acho que é uma cidade que engole muito a pessoa. Aqui, a gente tem os momentos de ficar de boa, vir pro ateliê e não pintar se quiser, por exemplo, ir tomar uma cerveja ali perto. Existe algo mais tranquilo onde não é tudo trabalho. Xinga e Eduardo queriam muito comprar um cigarro, e Marlan Cotrim, entrevistada para a primeira parte desta reportagem, deu a opção de passar na Praça do Sebo, ir no Chá Mate Brasília pegar um lanchinho e um maço para o grupo. Xinga pediu um suco misto sem açúcar. Xinga - Penso também em outros caminhos sobre essa questão do Sudeste. Por exemplo, Lu Ferreira⁴. Ele é um artista incrível do Escadaria, que tinha uma situação financeira muito difícil, mas teve uma virada de chave na carreira muito importante. Recentemente, ele foi pra uma residência de três meses em São Paulo muito foda chamada Domo.Damo⁵, que saiu até na Vogue EUA. Ele voltou para Recife com umas cinco encomendas, vai expor em Paris agora e não vendia há anos, sabe? Teve essa virada, e eu não digo que foi por conta do ateliê, mas ele lá na residência fala do Escadaria, saiu uma entrevista em que ele nos menciona. Eduardo Nóbrega - Existem outros caminhos, mas se esses que existem, de galeria, já são difíceis, então imagina os alternativos. O Escadaria pode abrir outras portas e iniciar outros caminhos para além desses. É engraçado porque tem gente que não sabe da existência do ateliê e aí explicamos “ah, fica na rua do Pagode do Didi”. E já rolou inclusive durante o pagode de subir com as pessoas pra cá só pra apresentar o ateliê e aí acabarem comprando um quadro. Subi só pra apresentar e desci com dois mil reais no bolso (risos). Xinga - A gente tá muito feliz com o que tá acontecendo com o ateliê. Passamos no SIC [Sistema de Incentivo à Cultura de Recife] agora, e vamos conseguir uma grana para reformar o andar de baixo. Nosso objetivo como pessoas independentes é não precisar pagar para trabalhar. Como coletivo, nós temos uma força que sozinhos não teríamos. Elizabeth Bandeira - Qual o papel e relevância das redes sociais na vivência de vocês enquanto artistas? Mais do que artistas, vocês também se colocam nessa posição de produtores de conteúdo numa tentativa de ter esse engajamento constante no trabalho? Xinga - Acho que é se colocar. É preciso acreditar no seu trabalho, apesar de tudo. Não ter galeria pra te representar é vender seu peixe o tempo inteiro e produzir constantemente. Não acho que a forma do artista crescer seja pelo Instagram, porque se você virar artista de Instagram isso vira seu trabalho, mais do que ser artista. Pra você vender seu peixe, eu acho que é botar sua cara a tapa no meio da arte, se inscrever em edital, expor sua obra onde der, são várias outras formas para além da rede social. Elizabeth Bandeira - Tem algo muito forte e único nas obras dos dois, como uma marca estilística que reforça uma assinatura própria. Como vocês enxergam os seus próprios trabalhos? Xinga - Eu descobri muito sobre conceitualizar meu trabalho e entendê-lo aqui no Escadaria. Tem coisas que sempre estão presentes na minha tela: os ovos, o raio, as botas, o leite, as cobras, o seio, o fogo, o copo americano. Todos os símbolos que se repetem fazem parte de uma narrativa de relações de poder, sobre corpa, sobre existir de uma forma diferente, outras narrativas de inferno, de outras criaturas que são quase não humanas. Eduardo Nóbrega - Já recebo muitos comentários do tipo “teu trabalho é tua cara” ou “quando eu vejo já sei que é tu” e isso é massa, porque você olha pra trás e vê que só chegou aí por um trabalho de muita construção, pesquisa, desenvolvimento, entre erros e acertos. E nem é erro, é um processo! Hoje eu me sinto muito mais confortável com o meu trabalho por causa do Escadaria. A gente também se deixa influenciar por quem está ao nosso redor. Poxa, olhei o trabalho de Ossy ⁶ ali com a escultura e pensei “tô com vontade de desenvolver algo do tipo também”. Barja retorna à mesa e participa mais uma vez da conversa, mas agora para contar dos seus próprios processos artísticos Chacha Barja - Sou de Belém, aí morei muito tempo no Rio, fui pra São Paulo e agora tô aqui há três anos. Meu processo de pesquisa também está envolvido com essa mudança para Recife. O meu trabalho tem a ver com essa mistura de objetos, de animais, flora, como um acúmulo de coisas, sempre carregando tudo comigo. Nas minhas obras, tem a coisa do abstrato figurativo, os símbolos que sempre se repetem como os adornos da arquitetura, estampas, bordados, recortes que me atravessam dessa mistura de cidades. Eu estava trabalhando muito só e foi muito importante estar com outras pessoas, compartilhar as minhas questões e entender as inseguranças de outros artistas, essas pessoas que estão insistindo no trabalho. Elizabeth Bandeira - Em que sentido estar atuando em um ateliê de criação coletivo te transformou? Eduardo Nóbrega - Eu não saio mais daqui. Posso dizer por agora, porque existe uma comparação na minha profissão de antes do Escadaria e depois. Estando aqui, aconteceram muito mais coisas para mim, muito mais portas abertas do que antes. Xinga - Eu produzi muito desde que cheguei no ateliê, meu trabalho evoluiu. O mundo da arte tem bastante ego e grana envolvidos, então você tem que confiar mesmo no seu trabalho para se colocar como artista. Porque sempre vai ter gente pra perguntar “oxe, e tu é mesmo?” Não é fácil inserir seu trabalho no mercado, mas tem que peitar e dizer que é artista sim. Ainda não sei o quanto meu trabalho pode crescer aqui em Recife, mas sei que ele está crescendo no Escadaria e tá me colocando em espaços que eu não estaria se não fizesse parte desse coletivo. 1 - Mapeada pela revista Propágulo Nº5 , Rayana Rayo é a artista idealizadora do Escadaria. Atualmente é representada pela Galeria Marco Zero. 2 - Amorí é de Ribeirão (1995), município da Zona da Mata Sul de Pernambuco, e reside na cidade do Recife desde 2012. Formada em enfermagem, atua na área desde 2017. Em seus trabalhos toma a experimentação artística como um momento de estar consigo. Explora fluidez e movimento em suas obras, com técnicas diversas que o misturem na arte. 3 - Artista de Belém, município do Pará, mas atuante no Recife, Barja integra o Escadaria Atelier Coletivo, tendo também composto a publicação da Propágulo "Outras Gramáticas" em 2021. 4 - Lu Ferreira é artista de Olinda (PE) e integra o Escadaria Atelier Coletivo. 5 - Lu Ferreira participou do primeiro ciclo de residências da Domo Damo, uma casa de arte brutalista em São Paulo. Com um viés comunitário e é assinado pelo arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha. 6 - Ossy Nascimento, artista trans não binárie de 21 anos, natural de Olinda (PE). Desenvolve trabalhos de tatuagem, pintura, escultura e desenho desde 2020. A pele, a dissidências e a transgressão da imagem tradicional são pontos fundamentais da narrativa.

  • SEMELHANÇA DISSIDENTE NO ESCADARIA ATELIER

    Distante do festejo noturno das sextas-feiras recifenses, no qual a luz amarelada dos postes dão brilho à toada harmoniosa do pandeiro em sintonia com o cavaco no Pagode do Didi, a R. Ulhôa Cintra, no bairro de Santo Antônio, me parecia desconforme naquela tarde de segunda-feira. Não apenas pelo motivo da minha ida, que não combinava com o usual pândego da conhecida roda de samba na localidade, mas por me ver agora à trabalho, na condição de quem está prestes a iniciar uma entrevista. Nesse caso, a conversa traçaria um percurso dilatado, longe de focar em uma única pessoa, mas investigando as condutas e perspectivas de um coletivo de arte — o Escadaria Atelier Coletivo. É no Edifício Douro, um prédio multicolorido de dois andares, que o Escadaria toma forma e ocupa seu espaço na cidade. Fundado em outubro de 2021, é composto atualmente por 14 artistas residentes¹ que atuam majoritariamente no Recife. Estanciavam vespertinos em suas respectivas áreas de trabalho no dia da entrevista Chacha Barja, Marlan Cotrim e Xinga, cada um seguindo sua própria rotina de produção. Rotina intensa e acúmulo de tarefas se tornam a realidade de artistas que, mesmo com o avanço de políticas de democratização e afirmação, e a também inegável força do setor cultural em dialogar e se impôr, ainda se encontram em uma corrida dinâmica em busca de editais e patrocínios, como se tivessem que performar como empresários da suas próprias carreiras. Em uma realidade na qual os problemas e soluções aparentam ser cada vez mais individualistas, é através da contingência daqueles que compõem uma coletividade artística que se pauta meu interesse em observar o desenvolvimento do Escadaria, um espaço que vai se revelando, à medida que desenvolvo esta série de reportagens dividida em três partes, capaz de percorrer caminhos possíveis para um fazer artístico, menos penoso e solitário. Os recortes terrestres suspensos de Marlan Nas várias linguagens visuais realizadas neste espaço-criação coletivo, entre pintura, escultura e gravura, um projeto me chamou atenção. Do lado esquerdo do ateliê, em entremeios têxteis de linhas pretas de algodão bordadas num tule, um corpo pendendo para o lado com fios escorrendo abaixo dessa costura, semelhante ao curso de um rio caudaloso, recebia ainda algumas alterações pelas mãos atentas de Marlan Cotrim. De Goiás, deslocando-se para São Miguel dos Milagres, em Alagoas, onde morou por dois anos, a artista chegou ao Escadaria Ateliê ainda no começo de 2023. Suas obras em costura, que se caracterizam como mapas topográficos, refletindo o corpo como fronteira e a pele como litoral, foram influenciadas também pela pesquisa visual que se tornou o período de residência na cidade alagoana. “A natureza impera por lá. Eu morava a poucos metros da praia e é aquela coisa de ver cobra e cavalo no meio do caminho, de não precisar usar muita roupa — só a parte de baixo e chinelo”, recorda. “Foi aí que dei atenção a essa técnica para a repetição da linha, e comecei a estudar o movimento da luz e como ela vai bater de um lado para eu conseguir dar esse efeito de onda”. Em processo de desenvolvimento para ser exibida à época na exposição Seis Paisagens², “Forró de um lado só” é mais uma das diversas investigações têxteis que trazem à tona a sua linha de pesquisa: a relação do corpo, pele e território, todos interconectados por esses contornos terrenos capazes de suspensão. Vinda dos estudos com a dança desde os seus oito anos de idade, onde a coreografia da intenção converge por fim na encantaria do movimento, Marlan transborda em si o fascínio pelo corpo. Enquanto conversamos, percebo esse interesse se materializando na maneira como ela se vestia naquela tarde, seja o brinco prateado no formato de uma face pendurado em sua orelha, o anel decorado com um olho aberto ornando seu dedo médio, e até uma uma tatuagem vermelha de uma cobra na sua mão esquerda, que me remeteu à maleabilidade do corpo daquele réptil ali representado. Fios e mais fios de cabelo costurados em um tule no canto direito de um suporte metálico na sua área de trabalho também fazem parte desse imaginário criado sobre o corpo. Iniciada no final do ano de 2022, a pesquisa com cabelo se provou tocante para Marlan, apesar de ser um material difícil de se manusear com a agulha. “Esse trabalho tem muito de eu sempre querer ter cabelo grande desde criança. Eu sou filho de pastor, então é aquela coisa de sempre ouvir ʽcorta esse cabelo’, que marca muito minha infância”, enfatiza. “Cabelo traz à memória essa resistência do tempo, ele perdurando em mim anos em desobediência”. Dou ainda algumas voltas pelo ateliê do Escadaria, meio sem jeito de subitamente me aproximar de mais alguém para uma conversa que possa tomar tempo de trabalho, mas, antes de me acomodar na rota do acanhamento, sou movida pela chegada enérgica de mais um artista. Alto, usando um notório mullet como corte de cabelo e levemente esbaforido da subida dos lances de escada com sua bike ao lado, surgia Eduardo Nóbrega, que logo se juntou à mesa onde estava Xinga. Os dois juntos, conversando em uma harmoniosa fofocagem de amigos, me fizeram pensar que ali seria um bom caminho, ou ao menos um mais fluido, para desenvolver a pauta sobre esse espaço de arte desenvolvido em coletivo. De frente para os dois, começamos a traçar uma conversa sobre o início do Escadaria Ateliê, o funcionamento interno e os perrengues de uma iniciativa desenvolvida em conjunto, além de opiniões sobre a cena artística pernambucana e o porquê de se criar entre pares. ¹ O Escadaria é formado por Amorí, Aoruaura, Chacha Barja, Cigana, Danielly Guerra, Eduardo Nóbrega, Fefa Lins, Geoneide Brandão, Joana Liberal, Lu Ferreira, Luiza Morgado, Marlan Cotrim, Mirela Rodrigues, Ossy Nascimento, Rayana Rayo e Xinga. ² Exposição em cartaz na Galeria Marco Zero, “Seis Paisagens” é um experimento curatorial que reúne diferentes exposições individuais desenvolvidas por Guilherme Moraes a partir do trabalho dos artistas Bozó Bacamarte, Bruno Faria, David Alfonso, Ianah, Rayana Rayo e a entrevistada dessa primeira parte da série de reportagens, Marlan Cotrim.

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