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ARTISTA-TURISTA - REPRESENTAÇÃO, FRICÇÕES E VIOLÊNCIAS

Em conversa com a equipe editorial da Propágulo no lançamento do livro Cento e poucas notas introdutórias à Artista-turista, Luana Andrade aborda questões como o trânsito entre paisagens rurais e urbanas, sua situação enquanto imigrante em Portugal e como a ironia pode ser uma ferramenta para pensar criticamente sobre esses assuntos. O evento aconteceu no dia 5 de março de 2024 na Garrido Galeria.



HEITOR MOREIRA - Luana, você é de Surubim e sua pesquisa gira em torno de Portugal. Como você vivencia esse trânsito? Como é realizar sua pesquisa em um país europeu e ter esse corpo que atravessa a Região Metropolitana do Recife e o Agreste pernambucano?


LUANA ANDRADE - Muito obrigada por este convite, por esta noite, pelas pessoas que estão aqui. Nasci no Recife, mas me radiquei em Surubim, cidade do Agreste de Pernambuco. Cursei licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e lá concluí meu mestrado, também em Artes Visuais. Em seguida, iniciei o doutorado em educação artística em Portugal. Minha pesquisa está muito relacionada ao deslocamento, à sensação de pertencimento, bem como às relações entre arte e território. E, para mim, especificamente, os territórios do interior, pois é dessa territorialidade que venho. Em Portugal, mantenho uma relação com uma cidade específica do interior, que é Belmonte (em Pernambuco, é com Surubim). São dois lugares distantes entre si, mas que compartilham esse afastamento geográfico de um grande centro urbano. São histórias e lutas que, em algum momento, se cruzam.



HM - Como surgiu, então, a figura da Artista-Turista na sua pesquisa?


LA - Ela é uma persona que criei e que tem me ajudado a enfrentar questionamentos na minha pesquisa. Quando decidi iniciar essa investigação, tinha a vontade de explorar alguma experiência estética específica desses lugares, dos interiores. Isso estava muito ligado, desde a minha trajetória anterior no mestrado, aos estudos da Internacional Situacionista, dos quais extraí muitas referências da tese de Bruna [Rafaella Ferrer]. Então, em Surubim, onde iniciei essa pesquisa, pensei sobre esse situacionismo, que é marcadamente eurocêntrico (embora exista também no registro de outras geografias), e como ele se relacionava com o lugar onde eu estava, no Agreste Setentrional pernambucano. Parecia que, no fundo, havia a ideia de que o acaso da cidade tinha uma importância, uma potência de acontecimento maior no meio do caos urbano em detrimento dos interiores — justamente por ser um caos, facilitando o surgimento de eventos inesperados. Comecei então a vislumbrar um movimento que fosse uma paródia à Internacional Situacionista, chamado Rural Situacionista. Recorro ao deboche como estratégia para enfrentar e lidar com situações. Ele também é um tipo de produção de conhecimento, digo isso a partir, inclusive, da entrevista de Caetano Costa realizada por biarritzzz para a Revista Propágulo 06. A Rural Situacionista era, para mim, uma maneira de dar visibilidade à experiência estética de tudo isso que colocamos em um balaio e chamamos de “interior”, abordando os problemas de categorização e representação.



LA - Entendi que essa questão não era um interesse apenas meu, mas também institucional e de muitos artistas ao meu redor que desejavam promover e participar de atividades no interior, como residências e projetos artísticos. Pesquisando sobre o formato das residências, encontrei um livro [Rural Artists' Colonies in Europe, 1870-1910, de Nina Lübbren] que conecta a origem delas às colônias rurais de artistas na Europa, que buscavam se afastar da urbanidade, indo para o campo e, na verdade, idealizando uma imagem desse lugar. No entanto, a própria presença desses artistas nesses lugares acabava por urbanizá-los, alterando aquela paisagem que eles próprios queriam representar, uma espécie de romantismo agrário, quase como uma paisagem bíblica, aquele paraíso que era o campo — que é, na verdade, um território de muitas lutas. Então existe um paradoxo nessas afirmações, que veem esse espaço como um lugar de ócio. Neste livro há relatos de que os artistas eram chamados de “turistas” pelos locais, de forma pejorativa, ou seja, como pessoas que estavam ali na superfície, e não necessariamente para se aprofundar naquela circunstância, o que era a intenção deles. Eu combinei essas duas identidades e saí por aí, usando o mesmo aparato de uma turista, mas tentando ver nesses lugares o que é comum, o que não seria o olhar de uma turista, mas de uma artista, tensionando essas duas identidades. Complementando a primeira pergunta, em Portugal não sou turista, sou imigrante. Então é uma maneira de trazer a ficção para esse lugar do posicionamento social também.



ROD SOUZA LEÃO - No livro, você fala sobre essa representação turística dos lugares, chegando a se perguntar sobre o porquê dessa representação, da criação de experiências postiças. Qual a relação entre a sua pesquisa, a ideia de representação e as narrativas que se criam a partir do outro?


LA - Vivo na cidade do Porto, um local que vem sendo muito gentrificado, especialmente pelo turismo. Existem grandes problemas de habitação e um dos temas das eleições deste ano, inclusive, é a especulação de que há mais Airbnbs e hotéis do que casas para as pessoas morarem. Achava interessante começarmos a pensar no turismo como algo que deve ser historicizado e problematizado, relacionando-o quiçá às grandes navegações, de onde vem o problema colonial que enfrentamos. Isso causa uma provocação, porque o turismo também é um motor econômico dos lugares. É como se você estivesse mexendo numa coisa que não pode ser alvo de muita crítica.




LA - A primeira frase do livro é “Viajar para conhecer é uma falácia” e parte da reflexão de que, quando viajamos, temos a sensação de estarmos conhecendo um lugar. No entanto, passamos por tantos lugares que nunca vamos saber verdadeiramente que lugares são esses. O que é que a gente tem acesso deles? Que representação é essa que é construída e para quê? Minha primeira visita como artista-turista foi em 2022 a Monsanto, uma vila eleita, durante o Estado Novo [regime ditatorial], por um concurso promovido à época pela Secretaria Portuguesa Nacional de Propaganda, como a aldeia mais portuguesa do país. Foi muito interessante para minha pesquisa saber disso, porque Portugal teve a sua imagem de estado-nação centrada na aldeia, na vida camponesa idealizada. Ainda hoje é possível comprar nessa vila o fac-símile do Guia de Monsanto, que foi produzido em 1938. Nesta minha visita, comecei a me perguntar: como representar um lugar? Por que essa representação da “aldeia mais portuguesa de Portugal” ainda vigora nos dias de hoje? É disso que Monsanto sobrevive economicamente, desse tipo de turismo. Vai se criando umas verdades a partir dos regimes de representação, e acho que é saudável mexer nisso.



GUILHERME MORAES - Existe um tipo de produção de escrita acadêmica que é específica desse campo, como a escrita de artigos científicos, dissertações e teses. Como foi fazer com que sua escrita migrasse para essas notas? Uma vez que o público-alvo da sua escrita deixa de ser exclusivamente a comunidade acadêmica e passa a ser o público em geral interessado em arte a partir desse livro, como é pensar essa outra finalidade da sua escrita?


LA - São públicos ainda muito distintos. Infelizmente, a academia é um lugar que produz um saber muito centralizado, de difícil acesso. Não que todas essas teses e dissertações maravilhosas não estejam lá nos repositórios, mas o debate acaba se fechando, cercado por um institucionalismo. Fazer o livro pra mim foi uma experiência interessante, porque esse texto surgiu da primeira vez que fui falar sobre a artista-turista numa aula. Sabe quando a gente faz uma lista daquilo que não pode esquecer de dizer? Eram 37 notas. E eu levei isso para a disciplina de escrita científica. Quando li as notas para o grupo, achamos que aquilo não era um conjunto de simples anotações que pretendiam se tornar outro tipo de texto depois. Nessa escrita fui dando vez a tudo que estava orbitando a artista-turista. São muitos assuntos, mas todos eles dizem respeito à relação da arte com os territórios e o deslocamento. É importante tentar criar esse espaço também dentro da academia para tornar o debate mais aberto.


GM - Nós passamos pela mesma licenciatura e pela mesma linha de pesquisa de mestrado. Sei que nossa formação e nossa maneira de produzir conhecimento é muito afeita à dúvida e à incerteza. Parece-me que esta escrita performa de maneira diferente desse dado. No livro, existem muito menos interrogações do que pontos finais. São afirmações contundentes, dentre elas: “Viajantes são profundos desconhecedores”, “Nem o novo nem o outro escapam à exotização” e “A residência artística tem sido usada enquanto formato apaziguador de tensões que se apresentam em relação entre artista e território”. Como se dá essa mudança de tom?


LA - Meus anos de formação na universidade foram imersos por uma lógica freiriana. Gosto desse exercício, que é o de sempre produzir perguntas, estas que geram sempre outras e mais perguntas. Não deixei pra lá esse exercício, mas o livro foi um momento de performar muitas afirmações, uma série de notas, de aforismos. A afirmação tem essa dureza. Além disso, quando a gente faz uma lista pra se lembrar, também constam ali coisas que foram esquecidas no caminho. Logo, existem perguntas nas entrelinhas. Há questionamentos entre a nota número 1 e a número 2 e assim em diante.



GM - Vamos abrir a roda de conversa e queria saber se alguém tem alguma pergunta?


Visitante não identificada - Você falou sobre Surubim e sobre Porto, mas passou sobre a sua relação com Belmonte. Queria saber como se dá sua relação com essa cidade.


LA - Tenho um irmão que trabalha com tecnologia, ele é desenvolvedor e também mora em Portugal, mas foi parar em Belmonte devido a um incentivo nacional à interiorização. O país tem incentivado que as pessoas ocupem esses espaços distantes de grandes centros urbanos, porque há um problema gigante em relação ao despovoamento dessas áreas. Passei a visitá-lo e a conhecer a cidade de uma forma menos restrita, ao invés de estar ali necessariamente para pesquisar. Mesmo sendo uma cidade interessante para essa investigação, não fui focada nisso a princípio, reconheço que a academia tem essa tendência de consumo, essa coisa predatória. Com o tempo e com as relações que fui criando lá, passou a fazer sentido que aquele fosse o meu território de ação.  A título de curiosidade, uma curiosidade fulcral: Belmonte é o lugar onde Pedro Álvares Cabral nasceu.


ANA GABRIELA AIRES - Estava bem curiosa desde o título da publicação. Comentei agora há pouco com Rod e Guilherme que também tenho uma pesquisa nesse sentido de imigração. Eu sou mais da literatura, da escrita, então fiquei agora ouvindo vocês, me perguntando justamente sobre essa fronteira da escrita acadêmica com a escrita mais artística, digamos assim. No livro, você lança notas sobre essa performance turística da superficialidade. Fiquei curiosa para saber como é cruzar a fronteira da escrita acadêmica e escrever enquanto artista-turista.


LA - Tenho uma preocupação para que a maneira como eu me expresso na academia não seja contrária àquilo que eu estou lutando na academia também. Até então, não tenho me deparado com nenhuma barreira nesse sentido. Pelo contrário, tenho encontrado pessoas que me estimulam a isso. A escrita é um processo investigativo também, ela própria já performa. Um doutorado são quatro anos de pesquisa e a escrita vai ser só o registro de algo que aconteceu? Aconteceu tanta coisa e agora como é que eu vou relatar, falar sobre isso? Eu acho que isso é uma maneira de colocar a escrita num lugar muito pequeno. A escrita, na verdade, é um lugar de performance, de luta também, dessas coisas que a gente defende tanto. Eu tenho essa perspectiva até então. Eu até pensei, quando estava pronto esse texto, olhando para ele várias vezes e pensando na minha pesquisa e no que um dia vai ser a minha tese. Ainda estou no meio desse caminho. Se eu pegar esse texto e for desdobrar, há muitas coisas entre uma nota e outra. É preciso policiar menos a escrita, deixar que ela tenha esse lugar mais potente de ser também uma maneira de pensar.



GM - Queria agradecer sobretudo a Luana, que acompanhamos pela Propágulo desde "A Beleza da Lagoa É Sempre Alguém". A gente te admira muito e é uma alegria sem tamanho iniciar essa série de livrinhos contigo. Para nós, você é uma referência de inteligência e leveza. É importante pontuar que esse livro não foi feito com fomento público, mas acontece devido aos nossos assinantes e patrocinadores, especialmente a Galeria Marco Zero e a Galeria Garrido, que abriram espaço enquanto espaço de arte que acredita em nosso trabalho. É um livro pequeno, mas que resulta de um esforço hercúleo e ter a casa cheia para seu lançamento é algo que não tem preço para nós. Agradecemos a presença de todos.


LUANA - Muito obrigada pelo cuidado. Foi um trabalho muito cuidadoso mesmo. Estou muito feliz de estar aqui e de ver muita gente que eu não via há tanto tempo. Obrigada, obrigada de verdade. É um trabalho muito bonito que a Propágulo vem fazendo.


Fotos do evento por Danilo Galvão

 

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