O que se revela sobre um ateliê coletivo em duas horas e oito minutos de conversa? E como é que se dá a criação entre pares em meio a um sistema de produção cada vez mais automatizado e individualista?
Em conversa registrada na sala 107, no Edifício Criadouro, foi desenvolvida a entrevista com os artistas Eduardo Nóbrega, Xinga e Chacha Barja para compor a segunda parte da série de reportagens sobre o Escadaria - Atelier Coletivo.
Neste diálogo com a Propágulo, são expressadas suas indagações enquanto artistas independentes — seja que tipo de papel um ateliê coletivo pode desempenhar na vida de seus membros, seja de qual forma o mesmo contribui para a potencialização e legitimação artística do grupo, estimulando, simultaneamente, as relações de confiança e reciprocidade no microcosmo daqueles que o integram.
5 de junho, às 16h28
Elizabeth Bandeira - Como surgiu o ateliê coletivo? Explica um pouco também sobre o processo de organização de um espaço de criação como o Escadaria — houve dificuldades? Foi harmonioso?
Eduardo Nóbrega - Rayana Rayo¹ deu início ao Escadaria em outubro de 2021 e trouxe com ela mais três pessoas, sendo uma delas Amorí², que tá aqui até hoje. No começo, fomos com tudo e pegamos treze, catorze pessoas para trabalhar no espaço e vimos que tava um caos, de certa forma. A gente não tinha muita experiência com coletivo e resolvemos só acolher um monte de artista que tava em uma mesma situação, sempre procurando um lugar pra trabalhar. Hoje em dia está mais orgânico, as pessoas têm preferências para os seus horários. Eu, por exemplo, gosto desse que estamos, das 14h até às 17h, mas já teve diversas danças das cadeiras por aqui.
Eduardo Nóbrega
Elizabeth Bandeira - O que te trouxe para o Escadaria, Xinga?
Xinga - Eu conseguia trabalhar sozinha, mas eram dias mais longos. O processo coletivo é bom, me faz querer ter uma rotina. Vindo pra cá, tenho meus colegas que têm o mesmo entendimento do que é ser artista e de como isso pode ser muitas vezes frustrante. Essa relação é bem saudável e nos tornamos um coletivo forte não só de trabalho, mas de viver muita coisa juntos nesses dois anos.
Após concluir um processo de pintura, surge Chacha Barja ³ na mesa onde conversávamos para compartilhar brevemente uma ideia.
Chacha Barja - Tava ouvindo vocês falando sobre o quão essa troca é importante, na instiga que aqui também é um lugar de construção, de trabalho e como nossos processos se intercalam. Eu não trabalhava tanto com pintura, ficava em casa e totalmente inseguro com essa técnica. Aí venho aqui e começo a trocar ideias com quem está no ateliê, cria um respaldo de pessoas ao seu redor que lhe dá segurança.
Xinga - Agora que Barja chegou, vou só reforçar que quando a gente fala do Escadaria ser um ateliê de artistas do Recife, a gente fala mais do que tá acontecendo no Recife. Até porque Barja é de Belém e morou no Rio por muito tempo, Marlan é de Goiânia e morou por dois anos em São Miguel dos Milagres. É mais sobre quem tá ocupando essa cidade e tem o desejo de estar num coletivo.
A gente queria poder dividir a experiência com outros artistas. Por indicação de Amorí, eu entrei no ateliê. Mas acredito que aqui cada um tem o seu processo e, de toda forma, os trabalhos conversam entre si. Tipo, Barja pinta 400 quadros de uma vez, Marlan faz dois bordados ao mesmo tempo, aí tá trabalhando com cabelo e depois com concreto. Eduardo sempre pintando, mas foca só em um projeto…
Elizabeth Bandeira - Você tem essa mesma inquietude de trabalhar com vários formatos?
Xinga - Eu tô fazendo uma série de dez quadros para serem expostos na ART-PE. O projeto se chama “Processo de segmentação”. Ao invés de dez projetos diferentes, eram dez telas, mas um só projeto.
Xinga
Eu comecei a entender melhor meu processo depois que passei esse meu ano no ateliê, por exemplo. Eu não faço rascunhos, pinto direto na tela e aprendi a fazer tudo sozinha, inclusive a pintura a óleo. Comecei a pintar como uma demanda econômica de entrar no mercado. Meu processo é outro, eu fazia fanzine com uma pegada punk.
Elizabeth Bandeira - É algo bem importante vocês estarem presentes na ART-PE, né? Estão indo como um coletivo mesmo e não representados por uma galeria, certo?
Eduardo Nóbrega - Poucos artistas são representados por galerias aqui, mas convertemos essa energia em sermos um espaço independente que consegue coexistir com esse mercado, que é tão valioso quanto. Estamos indo participar da ART-PE igual aos “grandões”, sabe?
Xinga - É um movimento de artista para fortalecer artista, de chegar em algum lugar que a gente queria chegar, mas junto. Dá ressentimento ficar sem galeria, sentir que não tem um espaço em Recife que tenha interesse no seu trabalho, ou que não queira lhe representar, porque acha que seu trabalho não vai vender. Nosso dia a dia aqui no coletivo acaba compensando essa frustração, porque é muito massa conviver com outros artistas que têm as mesmas piras e dividem os mesmos medos.
Eu acho que tem que falar, inclusive, sobre o que tá acontecendo fora das galerias, o que a galera tá se movimentando pra fazer fora disso, porque ser artista é assistemático. Não é uma forma fácil de viver e ninguém tá fazendo isso porque é fácil, como costumam falar. O Escadaria é uma resistência.
Elizabeth Bandeira - O Escadaria é um ateliê coletivo daqui do Recife, mas muitos dos seus artistas atualmente migraram para fora da cidade e ocupam também capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente por causa das propostas profissionais oferecidas. Como vocês enxergam essas oportunidades mais afluentes que circulam no Sudeste?
Xinga - A gente fala muito do Sudeste, eu sei, mas é que existem artistas ganhando mais dinheiro lá do que aqui. Penso que o mercado recifense tá meio contra a gente, porque a galera ainda tá mais interessada em valorizar e comprar de artista morto, ou dos mesmos nomes grandes batidos da cidade, que é o que dá status. A burguesia daqui ainda é pouco antenada no circuito contemporâneo.
Eduardo - Habla!
Xinga - Não tenho vontade de morar em São Paulo. Acho que é uma cidade que engole muito a pessoa. Aqui, a gente tem os momentos de ficar de boa, vir pro ateliê e não pintar se quiser, por exemplo, ir tomar uma cerveja ali perto. Existe algo mais tranquilo onde não é tudo trabalho.
Xinga e Eduardo queriam muito comprar um cigarro, e Marlan Cotrim, entrevistada para a primeira parte desta reportagem, deu a opção de passar na Praça do Sebo, ir no Chá Mate Brasília pegar um lanchinho e um maço para o grupo. Xinga pediu um suco misto sem açúcar.
Xinga - Penso também em outros caminhos sobre essa questão do Sudeste. Por exemplo, Lu Ferreira⁴. Ele é um artista incrível do Escadaria, que tinha uma situação financeira muito difícil, mas teve uma virada de chave na carreira muito importante. Recentemente, ele foi pra uma residência de três meses em São Paulo muito foda chamada Domo.Damo⁵, que saiu até na Vogue EUA. Ele voltou para Recife com umas cinco encomendas, vai expor em Paris agora e não vendia há anos, sabe? Teve essa virada, e eu não digo que foi por conta do ateliê, mas ele lá na residência fala do Escadaria, saiu uma entrevista em que ele nos menciona.
Eduardo Nóbrega - Existem outros caminhos, mas se esses que existem, de galeria, já são difíceis, então imagina os alternativos. O Escadaria pode abrir outras portas e iniciar outros caminhos para além desses.
É engraçado porque tem gente que não sabe da existência do ateliê e aí explicamos “ah, fica na rua do Pagode do Didi”. E já rolou inclusive durante o pagode de subir com as pessoas pra cá só pra apresentar o ateliê e aí acabarem comprando um quadro. Subi só pra apresentar e desci com dois mil reais no bolso (risos).
Xinga - A gente tá muito feliz com o que tá acontecendo com o ateliê. Passamos no SIC [Sistema de Incentivo à Cultura de Recife] agora, e vamos conseguir uma grana para reformar o andar de baixo. Nosso objetivo como pessoas independentes é não precisar pagar para trabalhar. Como coletivo, nós temos uma força que sozinhos não teríamos.
Elizabeth Bandeira - Qual o papel e relevância das redes sociais na vivência de vocês enquanto artistas? Mais do que artistas, vocês também se colocam nessa posição de produtores de conteúdo numa tentativa de ter esse engajamento constante no trabalho?
Xinga - Acho que é se colocar. É preciso acreditar no seu trabalho, apesar de tudo. Não ter galeria pra te representar é vender seu peixe o tempo inteiro e produzir constantemente. Não acho que a forma do artista crescer seja pelo Instagram, porque se você virar artista de Instagram isso vira seu trabalho, mais do que ser artista. Pra você vender seu peixe, eu acho que é botar sua cara a tapa no meio da arte, se inscrever em edital, expor sua obra onde der, são várias outras formas para além da rede social.
Elizabeth Bandeira - Tem algo muito forte e único nas obras dos dois, como uma marca estilística que reforça uma assinatura própria. Como vocês enxergam os seus próprios trabalhos?
Xinga - Eu descobri muito sobre conceitualizar meu trabalho e entendê-lo aqui no Escadaria. Tem coisas que sempre estão presentes na minha tela: os ovos, o raio, as botas, o leite, as cobras, o seio, o fogo, o copo americano. Todos os símbolos que se repetem fazem parte de uma narrativa de relações de poder, sobre corpa, sobre existir de uma forma diferente, outras narrativas de inferno, de outras criaturas que são quase não humanas.
Eduardo Nóbrega - Já recebo muitos comentários do tipo “teu trabalho é tua cara” ou “quando eu vejo já sei que é tu” e isso é massa, porque você olha pra trás e vê que só chegou aí por um trabalho de muita construção, pesquisa, desenvolvimento, entre erros e acertos. E nem é erro, é um processo! Hoje eu me sinto muito mais confortável com o meu trabalho por causa do Escadaria. A gente também se deixa influenciar por quem está ao nosso redor. Poxa, olhei o trabalho de Ossy ⁶ ali com a escultura e pensei “tô com vontade de desenvolver algo do tipo também”.
Barja retorna à mesa e participa mais uma vez da conversa, mas agora para contar dos seus próprios processos artísticos
Chacha Barja - Sou de Belém, aí morei muito tempo no Rio, fui pra São Paulo e agora tô aqui há três anos. Meu processo de pesquisa também está envolvido com essa mudança para Recife. O meu trabalho tem a ver com essa mistura de objetos, de animais, flora, como um acúmulo de coisas, sempre carregando tudo comigo. Nas minhas obras, tem a coisa do abstrato figurativo, os símbolos que sempre se repetem como os adornos da arquitetura, estampas, bordados, recortes que me atravessam dessa mistura de cidades.
Eu estava trabalhando muito só e foi muito importante estar com outras pessoas, compartilhar as minhas questões e entender as inseguranças de outros artistas, essas pessoas que estão insistindo no trabalho.
Elizabeth Bandeira - Em que sentido estar atuando em um ateliê de criação coletivo te transformou?
Eduardo Nóbrega - Eu não saio mais daqui. Posso dizer por agora, porque existe uma comparação na minha profissão de antes do Escadaria e depois. Estando aqui, aconteceram muito mais coisas para mim, muito mais portas abertas do que antes.
Xinga - Eu produzi muito desde que cheguei no ateliê, meu trabalho evoluiu. O mundo da arte tem bastante ego e grana envolvidos, então você tem que confiar mesmo no seu trabalho para se colocar como artista. Porque sempre vai ter gente pra perguntar “oxe, e tu é mesmo?”
Não é fácil inserir seu trabalho no mercado, mas tem que peitar e dizer que é artista sim.
Ainda não sei o quanto meu trabalho pode crescer aqui em Recife, mas sei que ele está crescendo no Escadaria e tá me colocando em espaços que eu não estaria se não fizesse parte desse coletivo.
1 - Mapeada pela revista Propágulo Nº5 , Rayana Rayo é a artista idealizadora do Escadaria. Atualmente é representada pela Galeria Marco Zero.
2 - Amorí é de Ribeirão (1995), município da Zona da Mata Sul de Pernambuco, e reside na cidade do Recife desde 2012. Formada em enfermagem, atua na área desde 2017. Em seus trabalhos toma a experimentação artística como um momento de estar consigo. Explora fluidez e movimento em suas obras, com técnicas diversas que o misturem na arte.
3 - Artista de Belém, município do Pará, mas atuante no Recife, Barja integra o Escadaria Atelier Coletivo, tendo também composto a publicação da Propágulo "Outras Gramáticas" em 2021.
4 - Lu Ferreira é artista de Olinda (PE) e integra o Escadaria Atelier Coletivo.
5 - Lu Ferreira participou do primeiro ciclo de residências da Domo Damo, uma casa de arte brutalista em São Paulo. Com um viés comunitário e é assinado pelo arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha.
6 - Ossy Nascimento, artista trans não binárie de 21 anos, natural de Olinda (PE). Desenvolve trabalhos de tatuagem, pintura, escultura e desenho desde 2020. A pele, a dissidências e a transgressão da imagem tradicional são pontos fundamentais da narrativa.