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Filipe Gondim

“PIXAR É HUMANO": ESCRITAS INSURGENTES NA CIDADE

Fui criado em um bairro de grande tradição na pixação. É relatado que desde o final da década de 80 e início da década de 90 existiam pixadores em Beberibe e nos arredores da Zona Norte do Recife (PE). Cresci onde o pixo era parte do cenário das avenidas, ruas, becos e vielas. A pixação surgiu, pelas bandas de cá, junto com o fenômeno das galeras periféricas — grupos de jovens que se uniam em torno de uma sigla, na maioria das vezes, representando uma abreviação dos seus bairros. Ocupavam os bailes funks da RMR. Os pixadores eram um tipo de propagadores dessas siglas pela cidade. No bairro de Beberibe, o comando mais expressivo e antigo é a ATM (Atacante Terroristas de Muros), em atuação até hoje.


Não sou da primeira geração de pixadores, longe disso, comecei bem depois que os primeiros registros de pixação apareceram em Recife. Nesse ambiente suburbano, tive meu contato inicial admirando as escritas nos muros. Depois, colocando os primeiros nomes nas paredes. Com certeza essa foi a primeira experiência com o fazer artístico, de maneira mais

consciente, mesmo ainda, nessa época, não me entendendo como artista. Com o passar do tempo, os limites territoriais do bairro foram ficando restritos, outros bairros foram fazendo parte das caminhadas. O pixo me fez conhecer a cidade e suas regiões. Ocupando cada vez mais territórios, da periferia até o centro da cidade, local hostil aos jovens periféricos. A vontade de deixar o pixo em mais lugares expandiu os horizontes fazendo com que a cidade negada cotidianamente fosse ocupada. E mais, transformou caminhos que eram apenas passagem em paisagem.


“PAREDE BRANCA, POVO MUDO”


A pixação exercita o olhar e faz enxergar a cidade de uma outra maneira. Onde para alguns é apenas cinza e concreto, para os pixadores viram locais com possibilidade de intervenção, mudando, assim, nossa identificação com esses territórios. Rompendo nossos limites cartográficos impostos socialmente. Ressignificando a urbe, suas esquinas, encruzilhadas e avenidas. Rompendo as amarras em uma atitude intrusiva, de penetrar os espaços proibidos pela sacra lei da propriedade privada.


As paredes riscadas são apenas parte de algo bem maior que existe por trás, no silêncio da ilegalidade imposta pelo Estado. Engana-se quem acha que a pixação começa e termina no ato de “vandalizar” muros. Ela existe em um amplo movimento, artérias e circuitos, que promove espaços, encontros e relações de irmandade e, também, de competitividade. Esses espaços de atuação geram identidade e representatividade. E, nesse processo, cada pixador se olha enquanto parte de algo maior. Uma identificação pelo que faz. E, levando em conta toda a alienação gerida pelo capitalismo, identificar-se como parte de algo é uma das razões do pixo, que, mesmo com toda repressão do Estado, não foi banido ou apagado do cenário urbano. Lembro que sempre um amigo falava: — “quando estou pixando é o único momento em que me identifico com o que faço”. Essa frase, por si só, revela o caráter desalienador do pixo, tanto no que diz respeito ao processo artístico, quanto ao processo de ocupação do espaço público, como meio de se reconhecer e se manter vivo na paisagem desumanizadora das metrópoles.


É lamentável que quando se levanta alguma discussão sobre pixação e arte, na maioria das vezes, os discursos se desdobram em um questionamento que, por trás da problematização, esconde aspectos conservadores sobre concepção artística e de aspectos sociais. E esse questionamento sempre gira em torno de ser ou não uma expressão artística. Essa problematização em torno de uma questão não deveria mais hegemonizar as discussões sobre a pixação no Brasil, já que essa expressão atua no ambiente urbano desde a década de 80, tempo histórico sufi ciente para se ter aprofundado estudos e análises sobre a temática. Também para escutar e acompanhar o desenvolvimento dessa expressão da arte urbana no cenário nacional. 


É possível, levando em conta as especificidades de cada local, traçar escolas, estilos e traços característicos de um estado ou tempo histórico. Cada artista, dentro do seu período de atuação, desenvolve sua técnica, criando suas letras, que mostram seu caráter criativo e suas influências e transformações ao longo do tempo. O que, por muitos, é apontado como

sujeira e rabiscos desordenados é, na verdade, um grande lastro de saberes e estilos desenvolvidos a partir de influências estéticas, desenvolvimento técnico, estudo individual e coletivo para chegar a um formato artístico para ser riscado nos muros. Só que, diferente de outras expressões e linguagens artísticas, o pixo surge como uma ação de transgressão e ruptura ao processo histórico de silenciamento, de negação dos espaços públicos e dos espaços privados e de afirmação artística e territorial de populações submetidas à marginalidade política, social e econômica.


“O VERDADEIRO BANDIDO NÃO FOI PRA CADEIA.

TÁ COMPRANDO AMAZÔNIA E DIZIMANDO ALDEIA”


Existe uma escassez de materiais e registros históricos produzidos pelos próprios pixadores. Essa escassez se aprofunda quando se procuram materiais das décadas passadas, onde o acesso a material audiovisual era algo difícil, dificuldades essas impostas pelos limites econômicos e pela falta de políticas públicas de democratização da produção visual e audiovisual. O material que se tem ou é fruto de recortes de matérias de jornais da grande imprensa, com um linha editorial quase única de apoio à criminalização e à perseguição ao pixo, ou são estudos e documentários realizados por pesquisadores, que muitas vezes reproduzem, em algum nível, o discurso do sistema opressor. Existiram várias iniciativas de organização de zines ou vídeos produzidos pelo próprio segmento artístico, e

esses materiais são de grande riqueza documental, mas, pelo grau de estrutura, se encontram dispersos e pulverizados. 


Muito do que resistiu, enquanto memória, foi fruto da cultura oral, onde uma geração passa para outras suas experiências, técnicas e histórias. Todo esse material discursivo circulando nos encontros, nos rolês… Houve uma melhoria no processo de documentação depois da massificação da internet e do fenômeno das redes sociais. Sabemos que parte da luta pela sobrevivência de uma cultura é sua luta pelo direito à memória. Apagar os muros com tinta, perseguir criminalmente e ignorar a existência da pixação é tudo parte do mesmo pacote de dominação e preservação das narrativas elitistas e higienizadoras para silenciar processos de transgressão e de enfrentamento com a historiografia “oficial”.


Diante disso, não é de se admirar que, durante toda existência da pixação, existiram ações judiciais para sua criminalização. Até 2008, o pixo era enquadrado no Artigo 63 do código penal como crime de depredação ao patrimônio. No mesmo ano, é aprovada no Congresso Nacional a Lei 9605 (lei dos crimes ambientais), que traz no Artigo 65 a tipificação do pixo como crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Além disso, ainda tem as leis e projetos de lei municipais e estaduais que fazem coro com a Lei 9605 e que, em alguns casos, chegam a ser mais duras. Todo esse aparato judicial esconde, por trás de um debate contra o pixo e a higienização das cidades, uma narrativa de perseguição às práticas culturais provenientes das periferias urbanas e da proteção à propriedade privada, buscando o esmagamento e o desaparecimento dos seus artistas, sendo a motivação delimitada por questão de classe e raça. São os pixadores, jovens das periferias urbanas, que sofrem perseguição judicial e, no silêncio da madrugada, violência policial, tortura psicológica e até mesmo, em alguns casos, assassinatos. Todos os pixadores carregam o peso de histórias e relatos dessas violências por parte da força policial e do poder judiciário. 


Sabemos que na cidade, no geral, dois projetos estão sempre em disputa. De um lado, privatização dos espaços públicos, gentrificação, elitização e criminalização da pobreza, da arte urbana e dos movimentos sociais. Processo este encabeçado pelo capital especulativo e grandes construtoras e apoiado por muitos governos e suas forças de repressão armada, que se beneficiam das gordas verbas e financiamentos de campanhas eleitorais. De outro lado, um projeto de cidade popular, com democratização do acesso e ocupação de seus espaços; garantia do direito pleno à moradia, trabalho e lazer; fomento e incentivo ao diálogo artístico urbano e preservação do patrimônio arquitetônico e histórico. Dentro desse espaço de fissuras sociais, a garantia do direito de expressão artística é uma luta importante para construção do projeto de uma cidade popular e inclusiva.


“A PIXAÇÃO É A ARTE QUE DISCRIMINARAM”


O processo de apagamento e invisibilização do pixo se dá, também, em âmbitos relacionados à arte. Um aspecto disso são as narrativas nos manuais e livros didáticos do ensino da arte nas escolas e universidades. Quando muito, esses materiais falam é de grafite e de outras expressões da arte urbana. E reforçam uma falsa dicotomia entre grafite/arte urbana vs pixação, se apropriando de um discurso que é muito propagado pelo

estado e, infelizmente, em alguns espaços artísticos, coloca as outras artes urbanas como uma alternativa higienizada e positiva, apontando a pixação como algo sujo e criminoso. Quando, na verdade, a origem do grafite remete aos mesmos princípios do pixo, onde, na rua, os artistas intervêm no cenário urbano de forma não autorizada pelo estado e pelos proprietários dos imóveis, deixando suas escritas como forma de manifesto e afirmação artística.


Outra postura bastante negativa é dos espaços institucionalizados de arte, incluindo as galerias, as mostras, as revistas especializadas, que, ao  não incorporar a pixação como uma expressão artística contemporânea, agem reproduzindo uma das lógicas do discurso e práticas conservadoras, que apaga qualquer possibilidade de discussão sobre a temática. Alguns espaços e galerias, principalmente as relacionadas a arte urbana, agem com uma outra postura. Como exemplo, temos a exposição em homenagem ao pixador DI (em memória), sendo esse um dos principais pixadores de São Paulo da década de 90 e um dos precursores da modalidade de pixos nos prédios. A exposição ocorreu em 2016, na A7MA Galeria, em São Paulo. Essas iniciativas são muito importantes, diante do peso e da presença que a pixação tem no cenário contemporâneo nacional e do necessário respeito que ela merece.


Contudo, longe de achar que o pixo precisa da legitimação do circuito de arte institucional e mercadológico para existir, pelo contrário. Talvez sua caminhada na contramão de todas essas institucionalidades seja parte da gênese do seu espírito libertário e do seu poder transgressor, justamente por conta de sua existência estar intrinsecamente ligada ao caráter “ilegal” da intervenção artística. Porém, uma coisa não precisa negar a outra, elas podem coexistir de maneira positiva e, ao incorporar nas suas programações, esses espaços, veículos e instituições ajudariam a desconstruir a propaganda ideológica criminalizante que recai sobre a pixação.


No pixo existe uma pluralidade de vozes e de visões sobre as escritas urbanas e elas todas precisam ser escutadas e visibilizadas. Esse texto é um relato pessoal de algumas experiências, vivências e opiniões que tenho sobre a pixação dentro do contexto social e artístico. Tenho noção da importância do pixo na minha formação artística e humana, quanto ela foi decisiva na compreensão da arte em que eu acredito e que me impulsionou a transitar por outras expressões, como a fotografia, a colagem, o lambe. Mas sempre entendendo a rua como um espaço de ocupação, resistência e intervenção. Pelo direito ao espaço público e à democratização da arte. “Pixar é humano”, já falava DI, e é parte da necessidade de se expressar em meio ao ruidoso caos urbano e sensibilizar nossas ações, desobediências e transgressões na urbe.


CITAÇÕES:


* A frase “Pixar é Humano” é de autoria do artista DI (SP), citado no texto;


** “O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia,

e dizimando aldeia” é um trecho da música Pixadores II, de autoria de

Nocivo Shomon;


*** “Parede branca, povo mudo” é uma frase de autoria desconhecida pixada

diversas vezes nas paredes de diversos lugares do Brasil e do mundo;


**** “Pixação é a arte que discriminaram” é trecho da música “Pixar é

humano”, de Grilo 13.

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