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MALEÁVEIS. NOTAS SOBRE OS SERES-ESCULTURAS DE CAIO MARCOLINI

Mariana Leme

Metal tecido, organismos transparentes, estruturas moles. A tentativa de descrever a produção escultórica de Caio Marcolini — por meio da junção de termos aparentemente disparatados — revela o caráter polivalente dos trabalhos. Uma estrutura, em princípio rígida, é tornada flexível por meio da técnica de sua produção: fios metálicos entrelaçados pelo artista (que constrói as próprias ferramentas) dão forma aos objetos que lembram tanto órgãos humanos quanto uma associação de organismos, uma biota por exemplo, que vive também em nossas entranhas.


O trançado de fios faz com que seja possível enxergar o interior de tais “organismos”, deixando evidente o vazio, preenchido de ar, que lhes dá forma e estrutura. Elementos aparentemente contraditórios podem, nesse caso, transformar-se em um emaranhado de sentidos que não apenas recusam uma interpretação fácil, mas abrem possibilidades — semânticas e sensoriais — que dizem respeito às múltiplas relações entre corpos, não necessariamente humanos.



Algumas das obras parecem habitar as paredes, como se estivessem retirando delas uma espécie de seiva. Outras existem sobre bases, tocando o chão, ou mesmo suspensas. Um formato frequente de gota parece estar crescendo, prestes a se deslocar de um todo que é, ao mesmo tempo, inconstante e provisório, mesmo sendo escultura. Há também casos em que aquela espécie de “ventosa”, que parecia se alimentar da parede, está suspensa no ar, desafiando a leitura simples que propõe uma relação direta entre a forma e sua função. Para quê uma função, ou uma utilidade, já que, segundo Ailton Krenak, a vida não é útil?


Apesar de serem feitas em metal, como as tradicionais esculturas públicas dos heróis violentos celebrados pela arte ocidental (sobretudo no século 19), os trabalhos de Marcolini são, como já foi dito, maleáveis e transparentes. O que abre uma nova chave interpretativa: eles se dão a ver em sua totalidade, sem escamotear uma estrutura interna de apoio que, no caso dos “heróis”, poderia ter relação com os seres cujo trabalho (também no sentido empregado pela Física) sustenta sua carapaça rígida e grandiloquente. Além disso, as obras são leves, e guardam o potencial de serem facilmente transportadas, carregadas, rearranjadas e mesmo vestidas.


BLTS 02, série bilaterais, trama em fio de latão


Essa “inconstância” das obras, além de recusar a rigidez da escultura tradicional, faz lembrar o conhecido ensaio do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de Castro, “O mármore e a murta”, que se inicia com uma citação de António Vieira, retirada de uma publicação de 1657. Diz o padre:


Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; [...] mas, uma vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nelas firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil — que recebem tudo a que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram.¹

O desprezo do português pelo “mato” indomável e, enquanto metáfora, em relação aos indígenas brasileiros, evidencia não apenas sua ignorância em matéria de vidas e associações possíveis, como também pequenas — mas numerosas — histórias de anti-heróis, que recusam a durabilidade e a autoridade da fé, do mármore e do bronze fundido. Quem sabe com suas obras maleáveis, Marcolini não esteja também se recusando à autoridade do cânone, juntando-se à longa genealogia de artistas que propuseram outras materialidades, conceitos e formas, no campo da escultura?



Obras na sequência: BLTS 03 e ORG70


Alguns trabalhos são feitos com mais de um tipo de fio metálico, o que reafirma a ideia de simbiose, ou a relação mutuamente benéfica de seres que criam algo que só existe a partir desse encontro. É o caso de obras da série Membranas, feitas com fios de ferro e latão, dois metais de colorações e propriedades diversas, que brincam com a enorme variedade de combinações possíveis entre eles, além de outras que poderiam surgir do contato das reentrâncias e protuberâncias das formas, em princípio autônomas.


Na série Capturados, cobre e ferro também sugerem diferentes organismos, mas dessa vez a relação é tensa: um deles parece estar em vias de ser aniquilado e deglutido por um corpo maior, como o abraço de uma jiboia. A natureza, porém, não tem julgamentos morais; a morte de um ser frequentemente significa a vida de outro. De fato, em ambas as séries, e também em outros trabalhos, a matéria está lá, mas segue inconstante em seus usos e devires. “Os brasis”, lamentou Vieira, “ainda depois de crer, são incrédulos”. Poderia-se usar os sinônimos de “insolentes”, “insubordinados”: a maleabilidade da forma como recusa ao projeto civilizatório-colonial-moderno.


ORG162, série Híbridos, trama em fio de latão


De fato, algumas obras como as das séries SYS (Sistema), CLN (Colônia), MBN (Membrana) ou FSL (Fóssil) trazem, tanto nos títulos quanto na plaquinha de metal que as identifica, a marca dos sistemas de catalogação científicos, que buscam dar conta da extraordinária diversidade de espécies vivas que habitam o planeta. Tal sistema, no entanto, tende a desconsiderar a interação entre elas e todos os acontecimentos — provisórios ou não — que nascem desse contato íntimo, além da violência colonial que frequentemente acompanhou a prática de trabalho de biólogos, etnólogos, taxonomistas e outros profissionais, incluindo curadores e conservadores de museus.


Em outras palavras, por mais que a ideia de autonomia tenha prosperado no Ocidente, nenhum animal, mesmo o humano, seria capaz de viver sozinho — e o artista parece estar bastante consciente disso. Os trabalhos da série CLN, por exemplo, apesar de fazerem referência direta à catalogação colonial, remetem também à acepção de colônia que designa associações interespécies de vários indivíduos, como os recifes de corais ou as caravelas-portuguesas (organismo que parece ser o exato oposto dos barcos que têm o mesmo nome, sem hífen). Colônias, caravelas, esculturas, fios. Mais uma vez, a obra de Marcolini traz em si a ambivalência de sentidos aliada à maleabilidade das formas, e assim escapa à rigidez totalizante que é típica do pensamento ocidental.



Ao aludir e recusar os sistemas de representação, inclusive como imagem, pode-se pensar também no avesso do elogio a um suposto “pioneirismo” do artista moderno — tal qual um desbravador — que dá lugar a uma genealogia de diálogos formais e conceituais, tanto com outros artistas, quanto com seres não humanos. Como não lembrar dos “véus” que nascem nos cogumelos da família Phallaceae, ou das esculturas da artista nipo-estadunidense Ruth Asawa, a quem interessava explorar a relação “interdependente e integral” entre interior e exterior? Também a brasileira Ana Maria Tavares fez obras em metal trançado, em homenagem ao rio Cocó, que corre no atual território do Ceará para desaguar no oceano Atlântico, em plena capital.


Tecendo fios de diversos metais e levando em conta as múltiplas formas de associação, Caio Marcolini parece nos dizer que as formas de vida, de arte e de insubordinação estão aí, apesar de tudo. Não é necessário cavar o mármore com força, como gostaria o padre Vieira: as obras vão se multiplicando, rearranjando-se e tomando parte (sempre provisória) de novas paisagens.


Fotos: Rafael Barros

 

¹ CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 184.

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