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FREDERICO MORAIS: LIBERDADE E FRICÇÃO

  • Propágulo
  • há 3 dias
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Ao revisitar as raízes da prática curatorial no Brasil, torna-se evidente que a história da arte nas décadas de 60 a 80 se fez também de agentes que deslocaram as fronteiras entre arte, política e público. Entre esses protagonistas, Frederico Morais (1936) surge como figura incontornável: um curador independente.


Morais com cartaz das exposições Agnus Dei, Petite Galerie, 1970. Acervo Frederico Morais.
Morais com cartaz das exposições Agnus Dei, Petite Galerie, 1970. Acervo Frederico Morais.

No livro A Gênese da Curadoria no Brasil, a pesquisadora Cristiana Tejo nos apresenta ao mineiro autodidata e oriundo de um contexto popular, o qual construiu sua formação longe das instituições formais. Sua trajetória, indo de padeiro e camelô a crítico de arte influente, demonstra como a autonomia intelectual produziu a sua voz ousada e singular. Enquanto o emblemático curador suíço Harald Szeemann¹ revolucionava a cena europeia em 1969, Morais já experimentava no Brasil gestos radicais de curadoria, tensionados pelo autoritarismo da Ditadura Militar Brasileira. 




No centro de sua prática está a Arte de Guerrilha, uma recusa à arte confortável, afluente e disciplinada pelos gêneros tradicionais. Para ele, o papel do artista, seu corpo e o espaço expositivo deveriam se transformar em campo de fricção. Essa perspectiva alcança seu ápice em Do Corpo à Terra (1970). Nas mãos de Morais,  o Parque Municipal de Belo Horizonte tornou-se uma plataforma de risco, onde obras como Situação T/T, de Artur Barrio, ou Tiradentes: Totem - Monumento ao preso político, de Cildo Meireles, expandiam os limites éticos, estéticos e políticos possíveis naquele período. Situação T/T consistia na instalação de trouxas recheadas com carne, ossos e sangue. Semelhantes a corpos mutilados, evocavam imediatamente a violência, o desaparecimento forçado e a repressão da ditadura militar, perturbando no tecido urbano. A obra forçava o público a confrontar o terror estatal, tornando-se um ato radical que expandiu os limites éticos (por lidar com matéria orgânica e com a sugestão do corpo violado), estéticos (ao romper com a noção tradicional de obra-objeto) e políticos (por explicitar a violência de Estado que muitos queriam ocultar). 


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Registros de Situação T/T (trouxas ensanguentadas), de Artur Barrio, no Parque Municipal de Belo Horizonte, durante a manifestação Do Corpo à Terra, 1970. Acervo Pessoal Arthur Barrio.
Registros de Situação T/T (trouxas ensanguentadas), de Artur Barrio, no Parque Municipal de Belo Horizonte, durante a manifestação Do Corpo à Terra, 1970. Acervo Pessoal Arthur Barrio.

Já a obra de Cildo consistiu em erguer um grande totem feito com galinhas vivas, amarradas e posteriormente queimadas. O gesto perturbador estabelecia uma analogia direta com a figura de Tiradentes, herói enforcado e esquartejado pela Coroa portuguesa, transformando-o em símbolo dos presos políticos da ditadura. Ao recorrer a seres vivos e à ação irreversível do fogo, Meireles tensionava a relação entre arte e violência, questionando até que ponto a crueldade podia ser instrumentalizada para denunciar outra crueldade. 



Registros de Tiradentes: Totem – monumento ao Preso Político, de Cildo Meireles, no Parque Municipal de Belo Horizonte, durante a manifestação Do Corpo à Terra, 1970. Foto: Luiz Alphonsus.


Mas sua atuação de Morais não se restringiu ao choque. No livro, Cristiana Tejo destaca os Domingos da Criação (1971), no MAM Rio, momento no qual estabelece um gesto decisivo: devolver ao público o estatuto de criador em plena ditadura. Ali, papel, terra, fios e sucata se tornaram ferramentas de uma política da imaginação. O museu, para ele, era laboratório, não vitrine. Em Um domingo de papel, o MAM Rio transformou-se em um organismo pulsante. Pilhas de papéis foram colocados à disposição do público, que rasgava, torcia, colava, erguia estruturas improvisadas e inventava formas espontâneas. O museu tornava-se um laboratório de imaginação coletiva, onde adultos e crianças relembravam que criar era um direito comum.


Já no Domingo por um fio, o espaço foi tomado por rolos de barbante. As pessoas atravessavam o espaço puxando fios, esticando-os, torcendo-os, trançando-os com desconhecidos. A teia coletiva tornara-se uma arquitetura efêmera construída por mãos que, em circunstâncias normais, jamais se cruzariam. Cada corpo interferia no espaço e no percurso do outro. Criava-se ali uma experiência de interdependência, demonstrando que a imaginação, nas mãos do público, era capaz de reorganizar a própria estrutura do museu.


O corpo a corpo do domingo, O corpo a corpo do domingo, O som do domingo e O tecido do domingo, no MAM Rio, 1971
O corpo a corpo do domingo, O corpo a corpo do domingo, O som do domingo e O tecido do domingo, no MAM Rio, 1971

Outro eixo abordado na publicação é a Nova Crítica, movimento no qual Morais recusa a mediação distante do texto e passa a responder às obras por meio de ações, vídeos e proposições artísticas. Crítica e criação se contaminam, como quando respondeu a Cildo Meireles e suas Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970). Na obra, exposta na mostra Agnus Dei, na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, Meireles intervém fisicamente em garrafas de Coca-Cola, inscrevendo nelas provocações sobre o circuito de consumo, a ditadura militar e o papel da arte. Essas garrafas — algumas com frases como “Quem matou Herzog?” ou “Onde está o povo?” — eram recolocadas em circulação, retornando ao público comum. Em vez de escrever um texto tradicional julgando o trabalho, em 18 de julho de 1970, Morais ocupou a galeria utilizando 15 mil garrafas vazias do refrigerante para responder às três garrafas de Cildo, criando uma massa industrial que dialogava com o conceito de circulação ideológica proposto por Cildo. Junto às garrafas, Morais exibiu fotos de um monge budista ateando fogo ao próprio corpo no Vietnã, acompanhadas de legendas com textos bíblicos do Gênesis e do Êxodo. A exposição-crítica durou apenas algumas horas, pois foi fechada sob ameaça de invasão da galeria pela polícia.


Garrafas de Coca-Cola vazias para sua resposta ao trabalho Inserções em Circuitos Ideológicos de Cildo Meireles, 1970.
Garrafas de Coca-Cola vazias para sua resposta ao trabalho Inserções em Circuitos Ideológicos de Cildo Meireles, 1970.

Essa atitude gerou forte reação no meio conservador da crítica. José Roberto Teixeira Leite², então vice-presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), declarou posteriormente que não se poderia considerar “como nova modalidade de crítica uma exposição de caixas de Coca-Cola”, classificando o ato como, no máximo, uma “manifestação promocional”. A figura de Morais reforça que a prática curatorial no país nasce menos da administração museológica e mais de uma crítica militante, implicada, combativa. Seu legado atravessa a arte contemporânea brasileira e segue orientando debates urgentes sobre o papel do curador, do público e das instituições.


Ao retomarmos a formação da curadoria no Brasil, fica evidente que sua consolidação não dependeu apenas de instituições, mas de figuras capazes de reinventar o papel do curador em um país atravessado por tensões políticas, econômicas e culturais. Aracy Amaral, Frederico Morais e Walter Zanini — cada um à sua maneira — constituem os pilares dessa história. Aracy, com seu rigor intelectual e atuação institucional decisiva, tensionou a ideia de museu como espaço de memória para transformá-lo em plataforma crítica. Zanini, à frente do MAC USP, expandiu fronteiras ao incorporar linguagens experimentais e flertar com redes internacionais de criação, antecipando debates sobre circulação e mediação. E Morais, o mais radical entre eles, operou a partir da crítica, da ação direta e da experimentação social, defendendo uma arte viva, urgente e implicada no presente.


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É nesse encontro entre trajetórias tão distintas quanto complementares que o livro A Gênese da Curadoria no Brasil  não apenas recompõe o percurso desses três agentes — suas tensões, apostas e divergências — como revela como suas práticas moldaram o que hoje entendemos como atuação curatorial no país. Trata-se de um livro que devolve profundidade histórica a um campo frequentemente tratado como recente, mostrando que sua base é complexa, multifacetada e politicamente marcada. Ao acompanhar essas genealogias, o leitor descobre que a figura do curador independente, reivindicada por tantas práticas contemporâneas, encontra em Frederico Morais um de seus primeiros e mais contundentes modelos. Sua atuação atravessa o livro como a prova de que a curadoria, no Brasil, nasceu menos da burocracia e mais do gesto crítico — um gesto capaz de colocar corpo, cidade e público em fricção constante.


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¹ Harald Szeemann (Berna, Suíça, 1933–2005) Foi curador e historiador de arte, considerado um dos mais influentes curadores independentes do século XX. Diretor da Kunsthalle Bern (1961–1969), realizou a exposição When Attitudes Become Form (1969), integrando performance, instalação e processos artísticos. Pioneiro em documentar e promover arte conceitual, arte povera, fluxus e pós-minimalismo, também organizou a Documenta 5 (1972) e diversas bienais internacionais. 


² José Roberto Teixeira Leite (Rio de Janeiro, RJ, 1930) Crítico de arte, historiador, professor. Historiador e crítico de arte, tem atuação acadêmica, museológica e jornalística. Lecionou no Instituto de Belas Artes e na UFRJ, Gama Filho e IA/Unicamp. Foi Diretor do MNBA (1961–1964), e atuou como crítico de arte em diversos jornais e revistas cariocas e paulistas (1954–1974). É autor de mais de vinte livros sobre arte brasileira, incluindo A Pintura no Brasil Holandês (1967) e o Dicionário Crítico da Pintura no Brasil (1988). Jurado do Salão da Bússola (1969). Organizou exposições de arte brasileira no Brasil e no exterior e recebeu bolsas de aperfeiçoamento da John Simon Guggenheim Memorial Foundation (Nova York) e do Instituto de Alta Cultura (Lisboa). É membro da ABCA, do Comitê Brasileiro de História da Arte e integra conselhos consultivos da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea de Campinas.


 
 
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