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SAGRADO RISCO DO INFAMILIAR

Elizabeth Bandeira

Íntima do lápis de cor e do grafite, é principalmente no desenho que Juliana Lapa (Carpina, PE - 1985) encontra uma superfície sinestésica que evoca recordações familiares, das vivências profusas das mulheres, do campo e da terra. Conversei com a artista sobre o seu desejo de dividir as memórias que estão impressas no seu trabalho. Juliana também compartilha os primeiros contatos com o desenho, suas referências visuais e a necessidade de ampliar diálogos sobre arte contemporânea em cidades interioranas.


Festa da Morte, 2019


ELIZABETH BANDEIRA - Sua pesquisa se desenvolve a partir do desenho minucioso, envolto por uma linguagem artística poética e intimista. Em tempos de interfaces e digitalização, você segue lidando com o papel. Qual é a sua história com o desenho? O que te aproximou dessa técnica?


JULIANA LAPA - Não sentia ter uma escolha. O desenho veio a mim da mesma forma que vejo surgir na minha filha pequena, como um caminho natural para desenvolver minhas pesquisas. Essa técnica tem algo relativo aos primórdios. O desenho me permite entrar mais e mais no fazer artístico, pois é um manuseio melindroso. Busco a construção de algo profundo com o risco, com a linha que deslancha. O grafite me proporciona um fazer artesanal, cotidiano e meditativo.  Minha história com o desenho também vai desde as minhas origens — ter crescido na Mata Norte de Pernambuco e ser envolta pelas histórias das mulheres de lá, que se misturam com as da minha mãe e com as minhas próprias. Essa técnica se aproxima de um lugar da infância até no momento da fabulação, na busca por contar algo através do prazer que é desenhar.


Fotos: Danilo Galvão


EB - Você poderia exemplificar como as fábulas se apresentam nessas obras?


JL - Existe no meu desenho uma estrutura que conta uma história. Eu chamo isso de fábula. Uma obra que detalha bem essas narrativas que busco transmitir é A Festa da Morte. Para nomeá-la, usei como ferramenta o Tarô de Marselha, que me apresentou o Arcano 13, A Morte. Quando você olha essa figura enorme no desenho, o movimento dela lembra a obra Caronte, de Alexander Litovchenko, que data do século XIX. Esse personagem da mitologia grega é quem faz a travessia das almas para o mundo dos mortos. A lança dessa figura paira na obra sobre um crucifixo pregado na cabeça de uma mulher. A figura estaria anunciando um novo momento, uma nova ordem, uma ordem feminina, que se desfaz de controles sociais, os quais induzem culpa e dor. O estudo dos símbolos cria mais janelas para compreendermos aquilo que não conseguimos ver nitidamente. 


EB - Qual é a diferença da processualidade do desenho para a pintura no seu fazer? 


JL - Percebo mais a passagem do tempo quando pinto. Porque a pintura é uma técnica que requer mais de mim. Tenho que estar presente para a pincelada e a construção da mancha. No desenho, posso trabalhar com mais abstração. Me sinto mais suspensa sobre ele, colocando-me em um estado de permanência. O desenho, para mim, pode ser até como um mecanismo de fruição e meditação. Existe uma busca e o desenho é a ferramenta que uso nesse processo intuitivo.

Brasa e água, 2017 - 2019


EB - Você poderia falar um pouco sobre como foi a experiência do seu projeto de livro Sorte, saúde e felicidade?


JL - Em 2019, para fazer essa pesquisa, saí de carro pelo interior de Pernambuco, seguindo pelos municípios de Buíque, Exu, Santa-Maria da Boa Vista, Ingazeira e Carpina. Dentro desses lugares, o que havia em comum eram as histórias e vivências de mulheres agricultoras, ou mulheres que viviam em lugares com agricultura, como era a horta comunitária Djanira Menezes. Infelizmente ela está inativa agora, mas foi muito interessante conhecer esse espaço organizado por mulheres do assentamento Boqueirão, em Santa-Maria da Boa Vista, às margens da estrada da reforma agrária. Toda essa pesquisa também é permeada pela história da minha mãe. É como se tivesse entrado em um assunto que talvez dure a vida toda em mim e na minha arte, que é o cuidado com o campo, a relação transcendental e elementar entre a mulher e a terra.

Trabalho em horta comunitária organizada por mulheres do assentamento Boqueirão, em Santa-Maria da Boa Vista / Acervo pessoal


EB - Existe uma itinerância contínua na sua trajetória. Você já morou em Carpina, Recife, Olinda, Florianópolis e, mais recentemente, Montreal, no Canadá. De que forma esse processo migratório toca na sua linguagem artística e nas suas produções?


JL - Quando me desloco, a memória do lugar onde vivi passa a ser outra coisa, mas não em um sentido nostálgico. Fui para Florianópolis por causa da minha sogra, que faleceu. Nunca foi “Ah, agora vamos viver em uma nova cidade!”. A gente se mudou para ajudar e acompanhar esse momento. E aí rolou a pandemia da covid-19 e ficamos confinados em Floripa. Logo depois engravidei e segui por lá de 2021 a 2023, quando precisei voltar para Pernambuco para cuidar da minha mãe, que estava com Alzheimer, e que, em dezembro, faleceu. Quando estava em Carpina, já sentia Floripa através de uma  atmosfera de sonho, de lembrança, de memória. Como uma beterraba que você deixa no canto por vários dias: ela vai se transformando em outra coisa, forma ramos. Existe essa transformação da memória. Atualmente quero firmar minha base aqui no Recife, mas quando fazia esses processos migratórios também tinha um pouco de sair daqui para olhar para cá com uma certa distância que estando dentro eu não conseguiria enxergar.

Colheita Noturna, 2023


Outro ponto é que achava que poderia criar de qualquer lugar do mundo, mas não sou esse tipo de artista. Por exemplo, em 2020, morava na casa dos meus sogros e estava sem espaço para criar. Foi um ano que passou devagar, até pelo clima pandêmico, que se traduziu em Necrópole, o único desenho que fiz nesse período. Em Olinda tinha um ateliê, então eram trabalhos maiores. Já no Canadá, país que fiquei de novembro de 2023 a maio de 2024, o processo foi mais frio e solitário. Entendi que, para criar, preciso estar no meu lugar, estar em conexão com as pessoas da minha cultura. Essa peregrinação foi uma busca por identidade que eu mesma nem sabia que estava buscando. 


Necrópole, 2020


EB - Você rememora muito sobre Carpina, não à toa um dos seus últimos projetos, a Casa Viva, foi situado em um casarão antigo na sua cidade natal. A existência deste projeto também implica discussões sobre a preservação do patrimônio histórico. Por que foi importante a escolha desse espaço no município? Você tem alguma memória relacionada a ele antes da Casa Viva?


JL - Ele é um dos casarões mais antigos de Carpina, que é uma cidade fundada há 115 anos. A minha avó foi morar no município na década de 1950 e esse casarão, que já era erguido há muitos anos, ficava de frente para a casinha da minha família. Eu me lembro dele quando era pequena, parecia mal-assombrado. Quando pensei em fazer uma exposição em Carpina, articulei junto a Bruna Rafaella Ferrer¹ onde esse projeto poderia ser executado, já que não havia ali um espaço voltado para artes visuais. Achamos interessante abrir essa discussão sobre patrimônio na cidade porque está tudo sendo derrubado, e não é só em Carpina. Reabrir esse casarão foi também poder falar de sonho.


Zona da Saudade da Mata Norte, 2023, Foto: Danilo Galvão


EB - O papel do educativo no desenvolvimento da Casa Viva foi fundamental. Inclusive, são citadas no material didático do projeto algumas atividades propostas para o público visitante, como os mapas afetivos e a frottage. Queria saber porque foram escolhidas essas duas ações e quais rotas foram percebidas, tanto por você, quanto pelo educativo, neste processo de estímulo à emancipação cognitiva?


JL - A abordagem da Casa Viva veio de um desejo de nos comunicarmos e trocarmos com o município. Buscamos estimular um pensamento ativo em quem adentrasse na Casa. Quem entrava ali podia ver e brincar com as obras. Elas podiam ser tocadas. Oferecemos bolo e café, tinha algo de hospitalidade que falta em galerias e espaços artísticos, rodeados por paredes brancas enormes e seguranças na porta. A frottage é uma técnica surrealista de produção de imagem. A casa tinha muitas texturas, relevos e pisos com desenhos interessantes, tudo ali era para ser experienciado. Muitas pessoas perceberam que desenhar é algo mais simples do que se imagina. Tinha também o exercício da Pintura sem Fim, onde cada pessoa contava uma narrativa a partir da junção das faces de cubos. Era interessante, pois recebíamos muitas escolas e esses jovens contavam histórias de feminicídio, um assunto latente na cidade. Temas difíceis de serem tratados na escola surgiam espontaneamente na Casa Viva. Foi importantíssimo produzir uma arte que abre para o diálogo tangível, possível de ser discutido e compartilhado. O educativo não trabalhou no sentido de conduzir, mas de acolher e dar suporte às ações que aconteciam ali dentro.


EB - O que você traz consigo a partir da conclusão das atividades na Casa Viva?


JL - Sentir-se à vontade no espaço artístico também é função do artista. Estamos fazendo uma proposição de mundo. Gostaria de propor um lugar de diálogo e de experimentação. Quem visitava o espaço podia tocar em tudo. No final, as obras tinham um rastro das mãos e achei aquilo lindo, porque as pessoas deixavam também a sua marca. Podia ver onde os visitantes pegavam mais nas obras: existe um trabalho de uma mulher azul que jorra sangue vermelho de guache do seu peito. As pessoas tocavam muito ali. Teve uma experiência com uma visitante, acho que ela era do município de Lagoa do Carro, que falou pra mim que nunca tinha tocado em uma obra de arte e quando passou a mão nessa obra,  sentiu na boca um gosto de sangue. Achei essa fala muito forte. Claro que isso diz mais sobre ela do que sobre o meu trabalho, mas foi possível dar essa abertura a alguém por meio desse espaço artístico.


Roda a saia, 2023

EB - Seu trabalho preza pela minúcia de detalhes. Quais são as suas referências artísticas? 


JL - Recorro como referência às pinturas medievais e renascentistas. Gosto de Pieter Bruegel² e Giotto di Bondone³. Tenho uma verdadeira paixão pelo trabalho de Georgia O'Keeffe, porque acho desafiador entrar naquele mundo silencioso. O meu trabalho tem ruído, informações que parece que gritam às vezes. Então, quando vejo qualquer trabalho da Georgia me questiono como chegar ali. Bruegel me ensinou como contar uma história dentro de um espaço de tempo. É um trabalho assumidamente espiritual e encaro a minha produção da mesma maneira. Encontrei referências na literatura também, estou lendo atualmente o artigo A serpente como símbolo do tempo da arte latino-americana, de autoria da pesquisadora Marcela Botelho Tavares.


Riacho das Almas, 2019


EB - Conjugar a produção artística nas vivências da maternidade pode ser um grande desafio. A experiência de criar alguém se transformou em matéria criativa para suas obras? Como o maternar e a figura da mãe atravessam a sua vida atualmente?


JL - Quando descobri que estava grávida, fiquei “Eita, que massa!”. Sempre desenhei figuras grávidas, o ventre, a gestação. É uma coisa bizarra fazer crescer uma pessoa dentro da sua barriga. Gosto também dos símbolos que isso tem, o ventre como um recipiente alquímico. No meu desenho, no entanto, ainda estava dentro de um ciclo que havia se iniciado há um tempo atrás. No momento que compreendi minha condição, que era muito profunda — e esse entendimento só o tempo poderia dizer —, comecei a desenhar a gestação com muitos fluxos: veio muita água, usei bastante tinta e pincel. Percebi que meu trabalho mudou porque comecei a colocar cores nas obras. Antes, só investia no grafite ou no monocromático. Quando penso sobre a temática do maternar na minha vida, entendo que é muito difícil ser mãe e ser artista. É difícil o cansaço mental, porque por mais que meu marido esteja ali dando o melhor dele para cuidar da bebê, a minha filha só quer fazer tudo comigo. Não é humanamente possível cuidar de uma outra pessoa nesse nível que a maternidade exige. É tão pesado que corre o risco de tirar o brilho do trabalho. Acho que o processo de me tornar mãe me aterrou muito. Mas não vou deixar de ser Juliana para ser só a mãe de Maria. Trabalho conciliando esses papéis. 


Autorretrato grávida, 2021


EB - Seus estudos sobre as suas séries de desenho são registrados em diários. Qual a sua relação com esses cadernos e de que forma a escrita atravessa o processo de feitura de suas obras? 


JL - O meu trabalho atravessa uma pesquisa sobre a minha vida e principalmente sobre os meus sonhos. Realizo o exercício de trazer para o mundo tangível esse aspecto onírico por meio do papel. Escrevo no caderno como um processo de liberação de fluxo de ideias, no qual anoto palavras, cores, gestos, a atmosfera de sonhos... Isso é importante para a minha construção de imagens, que entra no campo da poesia, da reflexão filosófica e teórica. O resultado é pictórico, mas a imagem é só a pontinha de um processo que se inicia a partir da busca nesse campo invisível, incomum e subconsciente.


Acervo pessoal


EB - Quais são as histórias que você busca contar através do seu trabalho? Quais memórias e temáticas seguem rondando a sua produção?


JL - Sinto que vem muito conteúdo pessoal para a minha obra, mas não no sentido psicanalítico. Uso os recursos que tenho de história de vida para poder falar sobre mulheres, natureza, as memórias de Carpina, que é minha cidade natal, e as histórias da minha família, especialmente aquelas que envolvem a minha mãe. Ela era uma pessoa peculiar: nasceu no Agreste, teve uma história de vida marcada por abusos familiares e violência dentro do espaço rural, nas plantações de algodão. Minha mãe também foi uma figura central para minha formação técnica, porque aprendi desenho com ela. Cresci observando ela pintar panos de prato para vender, daqueles com imagens de vela, maçãs e umas bananas, todos esses elementos misturados em um acessório de cozinha. Por causa dessa influência, até hoje uso tintas de tecido Acrilex no meu trabalho. Estou adentrando na minha arte temáticas de matrilinearidade, que permeiam os meus sonhos e as lembranças do meu fazer artístico. Tenho símbolos recorrentes. A mulher, o corpo, a ferida, a dor, a paisagem enquanto corpo, que também expressa uma emoção. Todas essas paisagens dizem alguma coisa, quase como se fosse um terceiro personagem.

A Experiência Confirma as Suas Visões, 2018


Quem é essa paisagem? Porque ela se comporta dessa forma? A partir da recorrência das histórias que são contadas na obra fui fazendo uma auto-análise. Os meus diários de criação também expressam esses caminhos. Os cadernos vão me dando esse indício do que a imagem estava tentando puxar, pois são duas linguagens que se complementam. É como se eu me encontrasse no processo de escrita desses diários de bordo e o desenho acolhesse as histórias que fazem parte de mim para transformá-las em alguma mensagem. As fábulas de várias mulheres desaguam no meu ofício, especialmente aquelas que envolvem a minha mãe. Queria fazer algo com essas histórias, que também ressonam com as minhas e de muitas outras mulheres.


 

Juliana Lapa (Carpina, PE - 1985) nutre os cuidados emocionais e ecológicos dentro da sua prática artística. Íntima às técnicas artesanais, seja pelo manuseio do lápis de cor e do grafite em suas obras, é no desenho que a artista encontra uma superfície sinestésica capaz de abrir diálogos contínuos sobre as histórias do campo, entrecortadas por memórias coletivas e aquelas que pertencem ao seu íntimo familiar, assim como de temáticas relacionadas às vivências profusas das mulheres. Em conversa com a redatora da Propágulo, a entrevistada discute seu desejo em compartilhar as memórias que estão impressas no seu trabalho, além de desvelar os primeiros contatos com o desenho, suas referências visuais e a necessidade de abrir um diálogo sobre arte em cidades interioranas.


 

 ¹ Bruna Rafaella Ferrer (PE - 1983) é nascida em Vitória de Santo Antão. Coordena o grupo de desenho e performance de modelo vivo Risco!. Atualmente é artista pesquisadora, junto com Luana Andrade, no projeto Educação como ____. , em que integra processos artísticos e pedagógicos para investigar o que chamam de situações pedagógicas.


² Pieter Bruegel (NLD - 1525–1569), o Velho, foi o artista mais importante da pintura renascentista flamenga e brabantina, um pintor e gravurista da região de Brabante, conhecido por suas retratações de paisagens e cenas camponesas; foi também o primeiro pioneiro que optou em fazer as duas modalidades de foco em suas pinturas de destaque.


³  Giotto di Bondone (IT - 1267–1337) foi um pintor e arquiteto italiano. Considerado o precursor da pintura renascentista.


Georgia O'Keeffe (USA - 1887–1986) foi uma pintora estadunidense. Conhecida por suas pinturas com foco em detalhes de flores, a paisagem do Novo México e os arranha-céus de Nova Iorque, é considerada hoje como a “mãe” do modernismo dos Estados Unidos.


Matrilinearidade é uma classificação ou organização de um povo, grupo populacional, família, clã ou linhagem em que a descendência é contada em linha materna.




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