CÉU ISATTO: MÉTODO E IMPROVISO
- Elizabeth Bandeira
- 28 de out.
- 8 min de leitura
Entre o rigor do planejamento e o prazer do improviso, Céu Isatto (RS - 1998), constrói um universo onde falha, memória e matéria se entrelaçam. Artista visual de 26 anos, nascide em Porto Alegre e radicade em São Paulo, seu processo criativo é marcado por persistência e abertura ao acaso. Seus trabalhos são convites para a visão, o toque e a imaginação que se aloja no hiato entre palavra e cor.
Elizabeth Bandeira - Como começou o diálogo com as linguagens artísticas com que você trabalha?
Céu Isatto - Não sei exatamente qual seria meu primeiro primeiro diálogo. Acho que todo mundo, ou quase todo mundo, acaba tendo algum contato com linguagens artísticas quando pequene: seja tinta guache, seja giz de cera, barro ou blocos de madeira. Mas meu contato se intensificou lá pelo começo de 2019 quando comecei a ter interesse em publicação independente nas feiras da minha cidade. Comecei a pensar palavra e imagem conjuntamente, num suporte que é feito para ser folheado, que cabe nas mãos: zine, quadrinhos, etc. Acho que essa experiência foi muito avassaladora por esse sentir nas mãos, tocar, ver a textura do papel e as cores intensas dos diversos tipos de impressão possível. Com o tempo tudo isso acabou fermentando e inflando para outros lados, claro: texto, pintura, desenho em tecido, instalação, vídeo, etc. Mas acho que meu primeiro momento foi esse choque entre linguagem verbal (sempre ambígua) e linguagem visual — muito sensorial, especialmente numa sociedade como a nossa, tão voltada para a visão. Para mim as duas (palavra, imagem) sempre foram meio irmãs, muito próximas; inseparáveis. Irmãs minhas, irmãs entre si? Quando eu falo ou escrevo essas coisas aqui, gosto da maneira como a linguagem também torna possível essas ambiguidades.

EB - Quais memórias e questões seguem rondando sua produção? Como essas questões influenciam a forma como você pesquisa?
CI - Na verdade as memórias não são tão claras para mim. Tenho dificuldade em lembrar de detalhes específicos da minha vida pré-transição ou memórias mais distantes. Elas me parecem meio moles, de contornos borrados. Acho que por essa razão meu trabalho sempre volta a lidar com imagens de rostos muito próximos (sem poder ver com clareza a totalidade da face), traços abstratos como vestígios de imagens, enquadramentos de cantos, silhuetas sem detalhes claros e manchas que sempre flertam entre figurativo e abstração: é possível ver alguma figura mas, às vezes, é preciso esforço. A memória também é, em parte, ficção: ela muda, fermenta, toma outras formas inusitadas. Como diria a pesquisadora Sylvia Caiuby, “Uma imagem representa, no sentido bem simples de que ela torna presente qualquer coisa ausente: a rainha Elizabeth, o Papa João Paulo II, minha correspondente no Japão, a catedral da Sé, uma divindade qualquer.” (Novaes, p. 459). As imagens também presentificam a ausência daquilo que retratam e contam muito no seu fazer, no gesto de quem as fez; seja no enquadramento da câmera, seja na escolha de cores, no movimento da pincelada ou no traço do lápis. Presença e ausência são questões que sempre voltam pra mim, pois me permitem trabalhar também sobre amor e luto, memória e esquecimento. Dessa maneira, sinto o mundo lentamente mudando ao meu redor e vou me adaptando a ele, anotando meus passos enquanto ando.
“Traço uma sombra, um canto, um resquício de imagem. Trago-as ao mundo com a maneira que sinto na ponta dos dedos, no gosto da minha boca, no gesto da saudade daquilo que perdi. Torno o encontro propício entre memória e matéria.
Isto é amor? É minha vingança. Minha vingança contra o esquecimento. minha vingança contra o cercamento desse mundo. É um coro de meus reflexos; cabe nas mãos, nas palmas. Isso é minha intuição; a maneira como traço uma superfície quando desatente, como escrevo em fluxo de consciência. É o encontro do que vejo com o que falo, do que anotei em papel amassado e o que meu olho espia da janela. Tudo aquilo que vou deixando para trás — os rastros inscritos em qualquer superfície, palavras ou desenhos — vai conversando entre si: se contaminam, fermentam, mudam. Talvez seja essa a minha maneira de criar uma ponte; achar significado no encontro entre partes das coisas inanimadas” — Trecho de texto desenvolvido para minha pesquisa do mestrado na UNESP.
EB - Você pode falar sobre algum trabalho mais específico ou alguma das suas séries que estejam atualmente te mobilizando criativamente?
CI - Em 2021, ao falhar em desenhar uma paisagem, cobri uma tela quase pronta com um padrão xadrez 8x8 alternando entre verdes e tons rosa-arroxeados. Curiosamente, naquele momento, ao soterrar minha falha, percebi que o padrão 8x8 era idêntico ao do tabuleiro de xadrez; um jogo em que a abstração de quadrados simulam um terreno bélico. Motivade pela lógica de antigos jogos de tabuleiro — sua proximidade com meu fazer em pintura e antigos tabuleiros que eu jogava com minha família na infância — iniciei a obra Tabuleiro (2021), baseada no xadrez, e, depois, em Lugar Nenhum (2024), baseada em trilha.


Realizei uma obra com bordas bem definidas, que lembrassem o tabuleiro do jogo de gamão, em Boca de Leão (2024). Num primeiro momento, optei por não procurar informações antes das minhas tentativas em pintura, embarcando num processo curvo de tentativa e erro. Sem saber como usar fita crepe azul para demarcar os cantos da pintura, desejava bordas bem definidas que formassem triângulos como os que formam o padrão do tabuleiro de gamão. Falhei inúmeras vezes, pois a tinta “sangrava” para os lados, comprometendo a qualidade das silhuetas que desejava. A partir desses erros, do soterramento da tela e da retirada do resto de fita dos moldes, saíram trabalhos inesperados, feitos a partir da casca da tinta acrílica misturada à crepe já retirados da tela. O título de Cárie (2024), brinca com o fato de serem os restos da falha de Boca de Leão, e Diabolismo (2024), cita a forma pontuda e enrolada de uma presa distorcida.


Continuei minha jornada de miseráveis falhas — agora com duas novas obras — ao tentar apelar para a lógica da colagem: utilizei recortes de tecido triangulares, colei nas telas e dei algumas camadas de gesso, esperando que, através da diferença de alturas entre o suporte da pintura e o desnível aplicado, teria bordas bem definidas sem afetar o fundo da pintura. O resultado não saiu como eu esperava. Realizei numa tela menor tais testes e nomeei esta tela de Meia Boca; arcada inferior (2024).

Por fim, finalmente mesmo, aprendi a dar ao menos duas demãos de verniz ou tinta da mesma cor do fundo sobre a fita crepe já posicionada na tela antes de pintar a forma que desejava e, finalmente mesmo mesmo, pude obter o resultado que esperava em Boca de Leão: bordas lindamente definidas como planejei, nas quais cheguei sendo guiade por uma persistência similar à de uma criança. Tal processo, embora demorado e desgastante, também possibilitou o contato com materiais de uma forma muito diferente, bonita e inesperada. Permitir essas mutações no processo é próprio de um jeito curvo (pois evita a linha reta), cuir e divertido — etimologia vinda de divergir, diversão mesmo — de ser um corpo aberto à outras sensibilidades, possibilidades e mudanças de vento. Passar por outras técnicas ridiculamente ineficientes trouxe duas novas sensibilidades para meu arsenal: a linguagem do recorte, e a obsessão pela forma retangular e sua ligação com a imagem do dente ou da presa. Essas pequenas mudanças na minha maneira de pensar os materiais que uso possibilitou — em convergência com minha leitura do livro A Natureza da Mordida de Carla Madeira — a criação da obra Matilha (2024), com seus triângulos de alumínio apresentando pontas pintadas de spray vermelho que lembram uma série de presas enfileiradas.

O alumínio e o vermelho sangue do spray se mancham; material cortante e cor que avisa perigo. O metal contra a parede — opaca e branca — chama atenção pelo seu brilho e cor: fala para se aproximar, ver o brilho dançar, chegar mais perto. Talvez até tocar, mesmo que alguém saia feride. Triângulos voltados pra baixo; talvez uma boca com várias presas ou um conjunto de duplas de caninos de uma coletividade feroz, selvagem. A forma embala uma história de algo que já ocorreu — caçada, mordida, o rasgar da carne. Um primeiro impulso para essa obra vem de Carla Madeira, em seu romance Natureza da Mordida, quando escreve: “Os dentes se encostam na mordida. As marcas se fazem na mordida. Nada a fazer. A natureza da mordida está lá. Não importa quanto sejamos civilizados. A natureza da mordida é implacável, e o gato arranha. O rato rói. O homem sonha. E os sonhos não podem ser dominados.” — Pequeno texto que escrevi em conjunto com a finalização da obra Matilha.

EB - Por quais etapas você passa entre o rascunho e a materialização do trabalho?
CI - Acho que fico alternando entre uma obsessão metódica e um desapego do improviso. Planejo, faço rascunhos em papel, no digital, em tecido; penso nos materiais, no espaço em que será exposto, a desmontagem, as cores, a incidência de luz, a umidade; escrevo textos que acompanham o trabalho ou me ajudam a conceitualizar eles, penso na relação com outras obras. Penso com imensa organização ao longo de todo processo ao mesmo tempo que tenho apenas uma certeza: haverá imprevistos, improvisos e erros. Aprendi a acolher esses imprevistos e deixar a diversão — o divergir do caminho inicial — enriquecer meu processo, trazer algo novo, me dizer algo que ainda não sei. Acho que isso acaba gerando uma desorganização organizada ou uma organização desorganizada.
EB - Quais são as suas principais referências artísticas, visuais, sonoras, literárias, etc?
Gosto muito de ler ficção como maneira de imaginar possibilidades de mundo, experimento de pensamento desviante ou arte de procurar algum fragmento de verdade através do ato de contar mentiras. Gosto especialmente de escritoras como Ursula Le Guin com seus contos, Octavia Butler em sua Parábola do Semeador e Anne Carson na sua prosa em versos chamada Autobiografia do vermelho. Já na poesia, ando apreciando muito Ana Martins Marques, Ocean Vuong, Maria Isabel Iorio e Matilde Campilho. Há algo de bonito na maneira como na literatura é possível construir um mundo de contornos moles ou afiados através das palavras. O som silencioso das palavras escritas e o ritmo sutil que cada autore carrega me ensinam sobre outras formas de sensibilidade que afetam não apenas a maneira como leio ou produzo verbalmente linguagem, mas também como percebo as imagens e as traço no mundo de uma forma nova ao entrar em contato com a palavra escrita. Os sons, os ritmos e as junções estranhas de palavras me abrem para outras percepções de mundo. Pensando em meus filmes favoritos e que mexeram profundamente com minha maneira de lidar com o mundo e minha sensibilidade há principalmente Blue de Derek Jarman. Ter ficado quase duas horas em transe, na frente de uma tela azul, com amigos, enquanto ouvíamos o áudio desenrolar a narrativa focada no tom específico de azul analógico traduzido pelo projetor digital foi uma experiência avassaladora. Também posso citar outros filmes como a narrativa cômica, linda e inesperada de Red Aninsri, de Ratchapoom Boonbunchachoke , a atuação e direção em Jogo de Cena do Eduardo Coutinho e a atmosfera onírica de August in the Waters de Gakuryu Ishii. Essas produções têm lugares muito especiais no meu coração e na flor da minha pele.


