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FORMA INSÓLITA DA REPETIÇÃO

Ao criar obras que exploram a força complementar entre corpo e matéria, Chacha Barja (PA - 1990) revela uma intensa pesquisa sobre o barro e a escultura, a qual evidencia sofisticadas dimensões ontológicas, mais conscientes do mundo, em oposição ao tempo perdido em um ritmo mecanizado. Nesta entrevista, conversamos sobre como a cerâmica se tornou seu caminho para transformar vivências do seu íntimo em obras que falam sobre vitalismo, identidade e a brasilidade em uma insólita mistura.


​​ELIZABETH BANDEIRA - Qual o seu nome, sua idade e de onde você é? 


CHACHA BARJA - Meu nome é Chacha Barja, tenho 34 anos e nasci em Belém, mas me mudei para muitos lugares ao longo desse tempo. Minha infância foi no estado do Pará, e minha adolescência, a partir dos 12 anos, e parte da vida adulta, foi vivida no Rio de Janeiro. Ainda vivi quatro anos em São Paulo e agora estou em Recife, também há quatro anos.


EB - O seu escopo criativo abarca materialidades diversas. Qual delas foi a primeira que você teve interesse em adentrar e investigar mais sobre?


CB - O mistério da matéria me acompanha desde novo. O desenho foi a primeira linguagem com que me envolvi, pois era como uma brincadeira que encanta. O ato de desenhar foi como uma fuga, especialmente por ter vivido uma infância queer, existindo enquanto uma criança viada, o desenho se sobressaiu como uma escapatória e como uma criação de laços afetivos. Para mim, o desenho segue, ele foi e ainda é o início de tudo.



EB - A cerâmica é um ponto forte na sua pesquisa. Quais são as suas primeiras memórias com esse elemento? E o que te aproximou dela?


CB - O barro me traz lembranças muito nítidas de Belém, não só por toda a identidade da cerâmica marajoara e tapajônica que nos ronda, mas também pelas vivências e histórias da infância. Íamos muito para o mosqueiro, uma ilha fluvial perto da cidade e nessa região tínhamos, eu, minhas irmãs e nossos primos, uma brincadeira de ir até uma parte mais funda no rio para catar barro. Por meio dessa coleta arenosa e barrenta, com o que conseguimos levar para a margem e para a nossa casa, brincávamos de esculturinha e pintávamos as peças com guache. Eu devia ter uns cinco anos de idade. Essa é a minha primeira memória com o barro.



Já adulto, acabei me encaminhando para o Design de Produto, no intuito da criação e da materialização formal, mas, mesmo atuando no campo, não me sentia encaixado nesse mercado e nem na própria graduação. O que me impulsionou a sair desse caminho foi o meu sonho incessante de ser um escultor. Comecei a sentir que isso poderia ser um ofício quando passei, em 2013, numa residência em Portugal, na Vista Alegre, uma fábrica de porcelana e cerâmica. Era uma grande indústria que juntou, em um laboratório criativo, novos designers na casa dos 30 anos vindos dos mais variados lugares. Essa experiência me trouxe uma perspectiva muito diferente e interessante.

EB - Existe uma itinerância contínua na sua trajetória. De que forma esse processo migratório toca na sua linguagem artística e nas suas produções?


CB - Tive uma juventude de moradias instáveis. Essas mudanças foram contínuas e usualmente catastróficas. Acredito que é a partir daí que começo a criar apego pelos objetos, pois não consigo desgarrar da matéria e isso também flui para a forma como investigo minhas criações. Em 2017, vou para São Paulo. Lá, trabalho com agências de publicidade enquanto designer. No entanto, sabia que precisava traçar um novo caminho,  com o desejo de persistir nas investigações escultóricas. Ainda não tinha nem o barro nem o suporte financeiro, então minhas pesquisas estavam envoltas pelo rastro: objetos que eu catava, formando uma mapoteca de materiais preciosos para esse processo.



Começo, então, a explorar o processo volumétrico de uma forma, de abstrair uma fórmula, uma morfologia ou uma história pelo volume. E ainda em São Paulo, busco o barro para aprender um ofício e assim um suporte para a investigação escultórica. Atualmente, uso as ferramentas de trabalho que disponho no momento e finco um buraco neste chão recifense. Aqui exploro essa explosão que o barro provoca em mim e entendo as relações que o mesmo provoca nos corpos. Como que você pega nele? O que faz com ele? Trabalhar com o barro envolve uma relação, é como um namoro e uma poética.



EB - Como é o seu processo criativo? O que acontece entre o rascunho e a materialização do trabalho?


CB - Desenho o tempo inteiro e tenho alguns cadernos dos quais nunca me desfaço, onde coleto formas do cotidiano ou situações que me inspiram, a exemplo da nossa brasilidade como um todo: as situações e objetos que vemos na rua, frutas, pessoas… Daí vou para o barro e começo a trabalhar nele. Já testei muitos, atualmente trabalho tanto com massa cerâmica, que passa por um tratamento de purificação e é mais assertiva em resultados físicos de plasticidade e redução, quanto com o barro orgânico, que é mais singular em pigmentação e textura. Antigamente não tinha a pretensão de construir algo específico, porque era muito movido pelo ato da experimentação — algo também da infância, mas que vejo por uma outra perspectiva atualmente: hoje trago comigo também a intenção.



Gosto de escrever para entender os processos, em um dos meus textos falo que “de um vasto campo arenoso vejo turvo um futuro oásis: montanhas pálidas, castelos inacabáveis. Olhar para frente é um deserto. Os grãos escorrem da mão e todo dia se mudam com o vento. O amanhã é labirinto, incerto. Cansado do limpo horizonte. Explode a surpresa do agora. De golpe, o desejo aqui insiste. Perfuramos como presente. Do chão brotam olhos, órgãos, pelos, frutas e vulcões. Ergue-se aqui a vida, um vestígio para o futuro”. É como se o planejamento e a intenção de explorar algo em um futuro não fossem compreensíveis para mim, ainda não entendia os métodos ou se há algo que me definisse enquanto escultor, artista. Só quando começo a entender que o tempo do trabalho é o agora e que perfurar o chão é parte essencial do processo, é quando saio do pensamento escultórico do futuro e boto meu corpo para o trabalho atentamente, criando raízes.



EB - Quais são as histórias que você busca contar através do seu trabalho? Quais memórias e temáticas seguem rondando a sua produção?


CB - Começo a investigar a escultura a partir do conceito de vitalismo e da produção de Constantin Brâncuși. É um jogo de dualidade no qual você faz uma forma tomar vida enquanto doa parte da sua para aquela matéria. Cara, um dia de ateliê e fico com uma sede tremenda, porque a cerâmica puxa a água da gente, sabe? Então é como se tivesse extraindo esses corpos de mim, abrindo meus órgãos, meus olhos e meus ouvidos. Quero mostrar isso na minha escultura ao desenhar formas — orelha, língua, intestino — e penso nas escolhas cromáticas, com o acabamento dos esmaltes, que reforcem uma sensação do que é fluido ou do que é casca e armadura. Inicialmente trazia muitas cores às obras, mas com o tempo fui entendendo que precisava tratar sobre a matéria e forma para depois trazer as cores, os detalhes e as pinceladas que derretem e se transformam com a queima.  



EB - Quais referências, visuais, sonoras e textuais você mobiliza ao realizar suas esculturas e demais produções?


CB - O que me auxilia no processo de criação é a vida do cotidiano, a gambiarra. Soluções divertidas que expressam uma identidade brasileira mesmo. Objetos ordinários que rondam esse imaginário, algo voltado à fantasia, ao carnaval, ao comestível e ao tropical. Referências artísticas me volto para Maria Martins, Francisco Brennand, Tiago Amorim e Véio. Algo da cultura popular também me influencia, como é o caso dos ex-votos, as promessas feitas, o colocar de um corpo para fora. Quando cheguei em Recife, o Escadaria foi muito importante para mim. A cultura de dividir um ateliê e seus processos diários com outros artistas. Agradeço muito a Rayana Rayo, por me abraçar nesse espaço de singularidade, e a todas as outras artistas, onde encontrei laços de afeto e de trabalho, como Lu Ferreira, amorí e Danielly Guerra. Sobre o ofício do fazer na cerâmica, converso muito com Guilherme Lira, com Suênia Seixas e com Nando Portela. A troca com o outro tem um impacto tremendo no meu trabalho.



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