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ENTRE A CONSTRUÇÃO E A RUÍNA



O caminho para se investigar o repositório imagético de Pilar Rodriguez (BA - 1977) existe na própria composição visual de cada obra da artista — representações de rebocos aparentes em paredes domésticas, pastilhas de cerâmica de prédios e demais expressões arquitetônicas fazem parte deste repertório. Ainda assim, há percursos indicadores de camadas mais profundas, arqueológicas e nostálgicas na sua construção estética, onde os azulejos que revestem as telas evocam os vestígios de um país tropical tomado não apenas por sol e sombra, mas também pelos efeitos da passagem implacável do tempo.



Ter nascido na Bahia, em Salvador, onde viveu até os dois anos de idade, foi algo do acaso na vida de Pilar Rodriguez, filha de uma argentina e um espanhol. A família foi para a capital baiana por conta do trabalho de seu pai, mas pouco tempo depois se mudaria para o Rio de Janeiro, onde Pilar passou a maior parte da sua vida, até chegar recentemente, em 2021, no Recife. Ao contar sobre o início da sua trajetória artística, ela reforça a influência que as tantas migrações ao longo da sua vida perpassam os processos no seu trabalho.



“Quando fui me interessar por arte, comecei pela fotografia. Observava a paisagem do Rio de Janeiro, especialmente a vegetação. Fui representando essas plantas em aquarela e, com o tempo, adentrei nos meus trabalhos com muitas cores saturadas, as características da arquitetura local — o aspecto bidimensional dos azulejos faziam uma contrapartida com o lado sinuoso da botânica carioca. Quando chego no Recife, continuo essa pesquisa, mas observo outros tipos de vegetação, paisagens e comportamentos. Captava esse cenário nas minhas fotos e trazia o registro para o ateliê, pois de início partia dessas imagens para produzir os trabalhos. Comecei a me interessar pela forma como essa luz do Sol causticante do Recife age desgastando as superfícies. Nesse sentido, tive uma virada no meu trabalho e passei a ser influenciada por uma paisagem mais clara, de cores esmaecidas ”, explica.



“O clipe Mutual Core, da Björk, me deixou visualmente fascinada com as várias placas tectônicas tomando forma ao longo do vídeo. Pensei no meu ateliê. Antes me dedicava à pintura sobre tela, madeira e papel como superfícies… Agora a cidade me chama atenção com seus entulhos, comecei a observar objetos fora de um padrão da pintura. Fui catando esses pedaços que antes não faziam o menor sentido para mim, mas entendi, aos poucos, que estava construindo um universo lúdico dentro do meu espaço de trabalho. Tive uma conversa inspiradora com Marcelo Silveira¹, na qual ele me ajudou a entender que eu deveria assumir esses achados como o meu próprio trabalho, pois foram escolhidos por mim. Meu olhar está nessa seleção. Ele me deu uma abertura de olhar o meu trabalho artístico considerando o espaço, me convidando a pensar também a arquitetura do lugar, não somente as paredes, mas também teto e chão. Estou tentando entender esse processo. É como se a minha pintura estivesse saindo da tela para ganhar um aspecto tridimensional”, relata.



Pilar compartilha a rotina de artista com a organização da casa, na qual reside com seu marido e sua filha de 12 anos. Entre tarefas domésticas e cuidados maternos, segue arranjando tempo para realizar sua produção, que toma espaço pelo imóvel, desde a mesa de jantar até o seu pequeno ateliê, próximo à área de serviço do apartamento. “Para trabalhar, preciso ser muito disciplinada. Meu dia a dia é quase cronometrado.” Recordando da segunda edição da residência Veneza Teimosa, na qual esteve imersa, a artista ressalta como momentos dedicados exclusivamente à criação são importantes: “consegui com essa residência uma experiência de respiro: sentar em um sofá e observar minha obra de longe, ter um espaço amplo e com esse recuo vislumbrar novos horizontes para as minhas produções", comenta.



Criar objetos que gosta de olhar ou fazê-los pelo prazer da experimentação são as motivações de Pilar na dilatação da sua prática. A artista também reconhece tentativas de evocar o tempo transcorrido nas suas obras e em seus diários de bordo. Em um dos cadernos, escreveu “ninguém quer uma propriedade em ruína. Não tem mais valor. Meu trabalho fala da paisagem de um momento de agora, onde ela não é mais daquilo que era feita. Existiu”. Assim, ao representar uma parede branca desgastada pelo tempo, com a sua singela seleção cromática, tenciona uma correlação com os processos do envelhecimento humano. Nas telas, as minuciosas pastilhas de cerâmica também contrapoem a intensidade, rigidamente geométrica, e cada vez mais repetitiva, das habitações em grandes centros urbanos. Entre os prédios esquálidos, a se apoderarem da configuração do Recife, e a perda de territórios geográficos e sociais dos cotidianos passados, Pilar reflete sobre aquilo que permaneceu, ao ponto de exteriorizar um sobressalto nostálgico saudoso à contemporaneidade.



 

¹ Marcelo Silveira (1962, Gravatá - PE) é um artista que vive e trabalha em Recife (PE), Brasil. A madeira é a matéria base do seu trabalho. Pintura, objeto, escultura, instalação e desenho são seus principais meios de expressão.

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